sexta-feira, 3 de dezembro de 2004

 

O louvor a Cavaco



Só agora, depois da anunciada dissolução da Assembleia da República, é que muito boa gente descobriu que isto de Santana Lopes ser primeiro-ministro era, afinal, “areia demais para a sua camionete”.

Ora, para tentar preencher o vazio político deixado por Santana Lopes, e ainda por cima, escassas duas semanas depois do congresso, inúmeras vozes dentro do PSD voltam-se agora para Aníbal Cavaco Silva como o “Salvador da Pátria” e o único capaz de salvar o partido do descalabro eleitoral que as sondagens prenunciam.

Ora, tudo isto me fez lembrar do tempo em que Cavaco Silva se candidatou à presidência da república, concorrendo com Jorge Sampaio.
Naquela ocasião vigorava na sociedade portuguesa a profunda convicção de que os portugueses não quereriam nunca, como então se dizia, pôr «todos os ovos no mesmo cesto».
Queria isto dizer que se previa que, com o feliz exemplo da “coabitação” entre Mário Soares e os Governos do PSD, os portugueses nunca iriam votar simultaneamente num Governo e num Presidente da mesma filiação partidária, antes escolhendo uma espécie de vigilante equilíbrio de poderes entre os diferentes órgãos de soberania.
Por outras palavras, a confiar-se nas sondagens que unanimemente davam a vitória a Guterres nas legislativas seguintes, previa-se que, correspondentemente, Cavaco Silva fosse eleito Presidente da República.
Por outras palavras ainda: quanto mais certa fosse a vitória do P.S., mais certa seria a vitória de Cavaco.

A tal ponto, que dava até a sensação que, para tornar mais certa a vitória de Cavaco, nada melhor que tornar mais certa a derrota do PSD e mais certa a vitória dos socialistas.
Foi então que o PSD em peso, investindo todos os seus esforços políticos na candidatura presidencial, “entregou o ouro ao bandido” e se abandonou ao certo e inelutável destino da anunciada derrota nas legislativas.
De tal modo que se assistiu à debandada geral: ninguém queria ficar politicamente comprometido, e com o seu nome e reputação manchados e associados à derrota certa e anunciada que aí vinha.
O principal teorizador desta brilhante teoria política, e também o principal protagonista deste abandono foi, obviamente, Aníbal Cavaco Silva.
E com ele todo o PSD.
Mas com uma, e talvez única, excepção: Fernando Nogueira!
Com uma grandeza e um dignidade difíceis de encontrar na vida política portuguesa, Fernando Nogueira tomou as rédeas do partido e, sacrificando todo o seu futuro político, levou-o do descalabro das legislativas que elegeram Guterres às imaculadas e virginais mãos de Marcelo Rebelo de Sousa, a quem no congresso seguinte entregou o partido de mão beijada.
De seguida retirou-se da vida política e partidária com a mesma dignidade e grandeza com que as tinha vivido.

Recordo que, durante a campanha eleitoral, Fernando Nogueira teve mesmo de suportar ser publicamente desmentido por Cavaco Silva que, num amesquinhamento e num desprezo inqualificáveis, o sacrificou, e também ao partido, no altar das presidenciais.
Sempre tendo em vista a brilhante táctica política adoptada: mais certa seria a eleição presidencial quanto mais certa fosse a derrotado o PSD.
Com os resultados que todos conhecemos: a 14 de Janeiro de 1996 Jorge Sampaio é eleito Presidente da República.
À primeira volta.

Dois meses depois, em Março, realiza-se o congresso do PSD.
Foi nesse congresso que se deu um dos acontecimentos que mais me chocou na vida política portuguesa recente: não obstante o sacrifício de todo o partido, afinal tornado vão pela concludente e amarga derrota nas presidenciais, e não obstante o amesquinhamento político a Fernando Nogueira, Cavaco Silva entrou na sala do congresso, estudadamente tarde, e atravessou em pose magistral a coxia central, perante a louvaminhice indecente de todos os congressistas que, quase sem excepção, interromperam os trabalhos e se levantaram num unânime e estrondoso aplauso àquele que, afinal, tanto os tinha usado – e derrotado.
Com uma única excepção: a da mulher de Fernando Nogueira, que na primeira fila deixou Cavaco Silva de mão estendida quando este a tentou cumprimentar...

Com o passar dos anos, Cavaco Silva tem recatado habilidosamente a sua imagem política e tem sabido gerir o seu papel de referência histórica partidária, de vez em quando ouvido e de vez em quando dando magnanimamente o favor da sua opinião, sempre nos momentos mais graves do país.

Mesmo quando Cavaco repete a sua receita e, depois de Fernando Nogueira, chega agora a vez de amesquinhar o próprio Santana Lopes aconselhando os «políticos competentes a afastar os incompetentes».
E, uma vez mais, com resultados absolutamente extraordinários: aí está novamente o PSD unanimemente rendido aos pés de Cavaco Silva, a dois anos de distância ansiando e mendigando-lhe já, ora o favor da sua candidatura presidencial, ora o favor de tornar a liderar o partido, e lançando-se uma vez mais na mesma louvaminhice indecente dos velhos tempos.

O PSD é, de facto, um partido inigualável.
Embora desta vez eu possa entender o pânico que, decerto, assalta todo o partido, que vive horrorizado com a perspectiva de Santana Lopes, depois de sair do Governo, tornar a relançar a sua própria candidatura presidencial e de provavelmente nada se poder fazer para o contrariar, se ele assim o decidir.

Embora já não entenda a despudorada falta de memória para tudo o que se passou nos últimos meses da governação de Cavaco Silva.



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