segunda-feira, 22 de novembro de 2004
A Guerra Civil
Morrem mais de 3.000 pessoas por ano nas estradas portuguesas. Quase 9 pessoas por dia!
Sucedem-se as campanhas de prevenção rodoviária: anúncios nas televisões, nos jornais, em outdoors. Vemos imagens de automóveis completamente desfeitos e depoimentos comoventes de pessoas marcadas para o resto da vida.
Foi inaugurado ontem em Évora um memorial em nome das vítimas das estradas.
A Associação de Utilizadores do IP4 acendeu 220 velas, uma por cada das vítimas mortais ocorridas naquela via desde 1993.
Mas tudo parece inútil. Nada resulta.
É, de facto, uma autêntica GUERRA CIVIL!
Qual a causa deste autêntico morticínio?
Os portugueses têm muitas particularidades que os marcam e diferenciam. Para já, vivemos durante metade do século XX numa ditadura que era absolutamente imbecil: que nos proibia de falar, que nos impedia de instalar uma fábrica, que vedava à mulher o exercício do comércio sem a autorização do marido, que nos impunha uma licença para usarmos isqueiro... eu sei lá.
Resultado: criou-se nos portugueses a convicção de que as leis – todas as leis – são estúpidas e, por isso, só servem precisamente para serem violadas.
Com isso, e ao contrário do que acontece noutros países, dá-se a curiosa particularidade portuguesa de que a violação das leis nem sequer merece qualquer censura social.
Pelo contrário, é até aceite como absolutamente normal (e até mesmo frequentemente elogiado) que com sucesso consigamos fugir aos impostos, faltar ao emprego com um atestado que conseguimos com a colaboração de um médico simpático, que o dentista nos “desdobre” os recibos verdes, etc., etc.
Se até pensamos (já aqui falei disso) que é proibido pôr um papel no vidro do carro a dizer “vende-se”, não faz mal: pomos “procuro novo dono”.
Até no vocabulário corrente quando alguém leva um chocolate do supermercado sem o pagar, não está a roubar: está a “gamar” – o que, como toda a gente sabe, não é bem a mesma coisa!
O velho gagá que conseguiu a prorrogação da sua carta de condução por mais uns anitos com um qualquer atestado passado por um médico que nem sequer o viu, é tido como uma grande inteligência serôdia – mesmo que no dia seguinte entre em contramão na auto-estrada...
O médico é simplesmente “um gajo porreiro”.
Talvez o único crime que merecerá alguma crítica dos demais concidadãos seja o homicídio. E mesmo assim, nem todos, que há por aí muito facínora que só merece é estar morto.
É por isso que em Portugal a taxa de acidentes nunca descerá, por muitas campanhas de sensibilização que se façam.
Primeiro porque o iluminado que desenhou aquela estrada, aquela curva ou aquele viaduto é agora um notável militante partidário na pré-reforma. Estar agora a redesenhar o IP4, o IP5 ou a saída da CREL em Alverca, poderia significar politicamente uma crítica – e isso não é de todo admissível!
Mais vale deixar como está!
Depois porque o estafermo que colocou ali “aquele” sinal de trânsito é cunhado (ou até sobrinho) do Presidente da Câmara e, como este é um “histórico do partido” naquele concelho, provavelmente vão ali estar os dois mais 20 anos.
Finalmente, porque é sabido que “não faz mal nenhum” andar em excesso de velocidade, ultrapassar numa curva ou num risco contínuo, ou até beber uns copitos antes de conduzir.
E não é por causa de mais um “penalty” ou de um "meio-whisky" que o gato vai às filhoses.
Até o soturno Vítor Rainho defendeu este fim de semana no «Expresso» que se devia fazer uma distinção entre "bêbados conscientes" e "bêbados inconscientes"...
Porque, como toda a gente sabe, o Código da Estrada é uma "estupidez".
Depois, porque o condutor mais rápido e audaz é precisamente o que tem o melhor desempenho sexual - e isso, claro, carece de demonstração quotidiana.
Sejamos realistas: é um facto que, na grande generalidade dos casos, a violação do Código da Estrada não merece qualquer censura dos nossos concidadãos.
Mas, paradoxalmente, há inúmeros comportamentos que, apesar de não serem legalmente proibidos, os portugueses evitam praticar, precisamente porque temem, não a polícia, mas simplesmente a censura das demais pessoas que os rodeiam.
Se fugimos aos impostos ou se gamamos um chocolate, porque será que não passamos à frente da fila do Multibanco? (com excepção de um ou outro juiz, claro).
Somente por um único motivo: porque tememos que as outras pessoas comecem a vociferar um qualquer «ouve lá, ó palhaço: vai p’rá bicha!»
Do mesmo modo, a taxa de acidentes rodoviários em Portugal só descerá quando for pelo menos tão censurável ultrapassar numa curva ou conduzir com 1,5 de alcoolemia, como o é passar à frente da bicha do supermercado.
E é isso que as autoridades têm de compreender!
Jamais resultará qualquer campanha que mostre acidentados em cadeiras de rodas.
Resultará, sim, uma campanha que ensine os portugueses a censurar os condutores que fazem asneiras à sua frente - de modo a que temam essa censura!
Que lhes ensine um código, um gesto, uma espécie de “insulto padrão” que seja generalizado, e que os condutores passem a “temer” mais até do que temem a própria Brigada de Trânsito.
Se uma intensa campanha na televisão ensinasse os portugueses, por exemplo, a esticar o dedo indicador, significando qualquer coisa como “imbecil” ou “idiota”, e a mostrá-lo ao condutor do lado que está a falar ao telemóvel, isso decerto resultaria mais do que mil imagens de estropiados em cadeiras de rodas.
Até porque quando pomos em dúvida a qualidade da condução de um macho latino, estamos imediatamente a pôr em causa a sua virilidade. E isso é absolutamente inaceitável.
Significaria provavelmente o mesmo que o pior dos insultos: “vai p’rá bicha, ó maricas!».
E isso resulta sempre.
Todos se lembrarão da velha campanha publicitária (protagonizada por Nicolau Breyner) que ensinava os camionistas: “pisca da esquerda: aguenta”; “pisca da direita, pode passar”.
Essa resultou estrondosamente, não foi? Foi até se calhar a única que resultou.
Aí está!