segunda-feira, 25 de outubro de 2004

 

A dignidade da magistratura

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Ainda a propósito do que aqui escrevi sobre a demissão em bloco dos juizes formadores do C.E.J. (Centro de Estudos Judiciários) como protesto pela nomeação de Anabela Rodrigues para a direcção daquele Centro, ouvi hoje na T.S.F. o Presidente da Associação Sindical dos juizes portugueses reafirmar e deixar clara e inequívoca a sua oposição àquela nomeação dizendo que ela «afectava a dignidade da magistratura judicial portuguesa».

Ora, quando ouvi falar da «dignidade da magistratura judicial portuguesa» por qualquer motivo lembrei-me imediatamente de um artigo da autoria do advogado António Marinho publicado no “Expresso” de 10 de Junho de 2004 e que a seguir, e com a devida vénia, transcrevo na íntegra e que se chama:

«O caso Multibanco»
«O episódio encheu as páginas dos jornais e os noticiários das rádios e televisões, mas, apesar disso merece ser revisitado, não só pelo seu significado, mas também porque alguns dos factos mais relevantes nunca chegaram ao conhecimento do público.
«Ora vejamos: Um cidadão, que está na fila de uma caixa Multibanco, trava-se de razões com um outro que chega e, aparentemente, lhe teria passado à frente. A discussão avança e aquele chama malcriado a este, o qual, a despropósito, invoca o seu estatuto de juiz de direito.
«E aquele riposta: se é juiz, então é um juiz malcriado.
«Aí o magistrado puxa do seu cartão e prende-o. Vão para a esquadra da PSP mais próxima onde o cidadão fica detido.
«E enquanto os polícias elaboram o expediente para o apresentar a julgamento em processo sumário, o magistrado dirige-se ao Tribunal e vai falar com a juíza que estava de turno e deveria proceder a esse julgamento.
«Quando o cidadão detido lhe foi presente, a juíza, numa atitude corajosa, recusou-se a fazer o julgamento em processo sumário e remeteu os autos para processo comum onde os arguidos têm mais garantias de defesa.
«A primeira grande questão que se punha nesse processo era saber se o juiz tinha ou não passado à frente das pessoas que estavam na fila. O arguido dizia que sim e o juiz dizia que não.
«Se fosse verdade, poderia, eventualmente, considerar-se justificado o uso da expressão «malcriado». Caso contrário, poderia qualificar-se como injuriosa.
«Todo o episódio teria de ter sido gravado pela câmara de vigilância existente nas caixas ATM, pelo que o arguido requereu ao Ministério Público que providenciasse pela obtenção dessa gravação. Mas, em vez de ordenar imediatamente a apreensão da cassete, o MP demorou três semanas a decidir. E no último dia antes das férias de verão, 66 dias depois dos acontecimentos, mandou que... fosse oficiada a entidade bancária onde se situava a caixa Multibanco para remeter a dita cassete ao processo.
«Dez dias depois, o banco informava que a cassete já tinha sido reutilizada, por acaso, bastante tempo antes de decorrido o prazo legal em que não poderia ser desgravada. E tudo isso, apesar de se referir a factos altamente polémicos que foram objecto de ampla cobertura noticiosa por todos os órgãos de informação.
«A outra grande questão prende-se com o facto de o MP ter qualificado o acontecimento como configurando um crime semi-público, ou seja, como se o juiz tivesse sido «insultado» no exercício das suas funções ou por causa dessas funções, quando resultava óbvio que a discussão nada tivera a ver com a profissão do magistrado e, como tal, deveria, no máximo, ser tratada como um crime particular. Isso levou a que o juiz tivesse um tratamento privilegiado no processo, designadamente, isenção de custas, mas, sobretudo, legitimou, «a posteriori», um claro acto de abuso de poder.
«É que, enquanto crime particular, a alegada injúria não permitiria que o cidadão fosse detido, pelo que o MP teria de instaurar procedimento criminal contra o magistrado.
«O juiz apresentou também queixa contra alguns jornais e jornalistas a quem o MP, num arroubo de objectividade, logo se apressou a acusar de «achincalhar», «ridicularizar», «menosprezar», «enlamear», «banalizar» e «depreciar» a «qualidade funcional e o bom nome do queixoso».
«Os processos acabaram todos apensados e depois de iniciado o julgamento, todos os intervenientes concordaram em lhe pôr fim.
«Este caso, que possui outros pormenores ainda mais «interessantes», revela a cultura de alguns magistrados que não hesitam em usar os enormes poderes de que dispõem para resolver questões ou disputas estritamente pessoais. O mínimo que se poderá dizer é que o Estado de Direito dotou os senhores juizes de poderes soberanos para eles administrarem a justiça nos tribunais e não para prenderem cidadãos na sequência de discussões pessoais que não souberam evitar ou a que não foram capazes de pôr cobro sem recurso aos seus poderes funcionais.
«Resta dizer que o cidadão em causa era um musico-terapeuta que trabalhava com crianças vítimas de paralisia cerebral. Pouco tempo depois de finalizado o processo morreu subitamente de doença cardíaca.
«Quanto ao juiz, alguns anos mais tarde foi nomeado para o Tribunal Constitucional indicado pelo CDS/PP.
«Talvez pelo seu currículo em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos».

Como disse, vem esta transcrição a propósito duma nomeação que «afecta a dignidade da magistratura judicial portuguesa».
Penso que são escusados quaisquer comentários...



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