sábado, 15 de outubro de 2011
Desonestidade Intelectual
Essa peregrina ideia de responsabilizar criminalmente os membros do anterior Governo será talvez o maior exemplo de desonestidade intelectual que tenho visto nos últimos tempos.
Repare-se que não estamos a falar de um político ou de um membro de um Governo que tenha praticado um qualquer crime de favorecimento, de corrupção ou outro qualquer – e cujo tipo já está clara e perfeitamente definido na lei penal.
Não: do que estamos aqui a falar é de quem defende que de repente se deve pôr um miúdo de 25 anos, só porque alguém entendeu dar-lhe um cartão de juiz, a julgar as decisões políticas de um Governo anteriormente legitimado pelo voto popular.
E o que teríamos então?
Um juiz – que ninguém elegeu – a escrutinar a oportunidade exclusivamente política de um Governo que decidiu a mudança de um centro de saúde de um bairro para outro, da construção de uma auto-estrada ali em vez de acolá, com portagens ou sem portagens, ou a decisão de uma ponte com ou sem opção ferroviária?
Bem: sendo assim, teríamos de analisar – e sendo assim julgar criminalmente – cada um dos 150 ou 160 deputados que aprovaram a Lei do Orçamento de onde decorrem em primeira análise as grandes opções políticas e de que resultaram as decisões executivas do Governo.
E já que vamos nesse caminho, julguemos criminalmente o Presidente da República que promulgou essa lei.
Porque não?...
E se é assim, preparemo-nos desde já para o escrutínio jurídico-criminal que se deverá seguir à recente decisão do Governo de Pedro Passos Coelho de eliminar os subsídios de férias e de Natal.
O melhor seria não perdermos tempo e começarmos já a tratar disso!
Aguardemos serenamente a decisão do Procurador Geral da República que deverá dar início imediatamente a tal processo crime.
Porque não?
Ironias à parte, o que está em causa não é já a ausência de uma tipificação criminal anteriormente estabelecida.
Não é também o défice das contas do Estado e das medidas exclusivamente financeiras que esta maioria governamental parece privilegiar em detrimento da economia e de opções mais políticas e sociais.
Não é também a diabolização do ex-primeiro ministro José Sócrates que, pelos vistos, as últimas notícias parecem responsabilizar directa e pessoalmente pela mais grave crise económica e financeira a que o mundo já assistiu. Foi para responsabilizar José Sócrates que se fizeram manifestações em quase mil cidades por esse mundo fora, não foi?...
Já nem sequer está em causa o facto, por demais óbvio, de que se trata aqui de uma ideia que nos atiram para cima quando parece necessário justificar política e mediaticamente as medidas draconianas do actual Governo.
O que está em causa é, de facto, a incomensurável desonestidade intelectual de quem, para um mero ganho mediático e publicitário no jogo partidário, está a fazer de conta que não é característica essencial de um Estado de Direito e da própria definição fundamental de Democracia uma rigorosa separação do Poder Judicial do Poder Executivo e principalmente do próprio Poder Legislativo.