segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
A Pior das Burcas
Ainda não tinham começado as reuniões daquele dia, quando ela tocou à porta do escritório.
Pediu-me que a recebesse com muita urgência, ao mesmo tempo que dizia que não tinha dinheiro ali com ela, e que me pagaria mais tarde.
Era mulher ainda jovem, talvez 35 anos de idade e até bastante bonita.
Foi directa ao assunto: queria tratar do divórcio.
Baixou os olhos envergonhada e mostrou-me uma imensa nódoa negra na cara que a maquilhagem mal disfarçava.
As lágrimas corriam-lhe silenciosamente pela cara e contou-me:
Casada há quase 10 anos, um filho de 6 anos e um marido com uns ciúmes doentios e de uma inusitada violência.
Não havia um único dia do seu casamento em que não tivesse apanhado. Até na noite de núpcias, porque tinha dançado com não sem quem no copo-d’água.
Trabalhar estava fora de questão. Tinha até medo de falar no assunto.
Tinha cada minuto do seu dia rigorosamente controlado, e até aquela ida ao meu escritório naquele dia era o risco de mais uma sova.
Poderia eu ajudá-la?
Bem: o processo de divórcio era até fácil. E a nova lei, por muito que o nosso Presidente não goste dela, até lhe abria algumas oportunidades.
O pior era o resto.
Sair de casa? Nem pensar. Ir para onde?
Os pais já tinham morrido.
Não podia impor a sua presença na casa de uma amiga. Nem tinha amigas para isso. O marido tinha-se encarregado de lhe limitar as amizades ao longo dos anos.
E o filho? Não podia abandonar o filho!
Abriu muito os olhos: preferia continuar a ser sovada todos os dias a abandonar o filho!
Lembrei-me desta história a propósito da polémica da burca e da sua proibição.
E do argumento de que tal proibição constituía um atentado à liberdade religiosa e até à liberdade de determinação da mulher que pura e simplesmente escolha usar uma burca.
Uma mulher que escolha usar uma burca?
Mas será que essa escolha existe mesmo?
Mas que diferença existe entre uma mulher que usa uma burca e aquela mulher que estava ali à minha frente a chorar, uma mulher prisioneira na sua própria casa, refém do seu amor pelo filho e do seu próprio sustento?
Será que o uso da burca é um exercício de liberdade individual, cultural e religiosa, ou é precisamente um símbolo da privação dessas mesmas liberdades?
Não será que a burca é, antes de mais, um símbolo da opressão da mulher e da sua resignação a um estado de submissão de que não pode libertar-se?
Será que a proibição da burca não significaria o fim de um instrumento de aviltamento da dignidade e da liberdade da mulher?
Que escolha têm verdadeiramente estas duas mulheres?
Será que uma mulher que usa burca tem a mesma liberdade de não a usar que aquela mulher à minha frente tem a liberdade de fazer as malas, pegar no filho e sair de casa e abandonar aquele energúmeno?
Será que essa escolha existe mesmo?
Ela nem sequer o sabia: mas a mulher que ali estava à minha frente usava, de facto, uma autêntica burca…