quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

 

O Preço da Dignidade



A Palmira Silva recorda no «Jugular» que num discurso proferido em Novembro passado o presidente francês Nicolas Sarkozy defendeu a proibição do uso da burca em todo o território francês.

O meu primeiro instinto foi de repudiar esta intenção do presidente Sarkozy.
De facto, mais do que uma intolerável afronta à liberdade religiosa, ela constituirá um inequívoco ataque à liberdade individual dos cidadãos.

É verdade, como diz a Palmira, que esta lei não pretende assegurar a laicidade do Estado ou sequer a defesa da igualdade de género.
De facto, «um Estado laico deve ser neutro em matéria de religião, não favorecendo nem discriminando nenhuma religião no espaço que é de todos nem legislando sobre que partes de cada religião são admissíveis ou não. Num país ocidental em que as desigualdades homem mulher são gritantes, penso que proibir umas centenas de muçulmanas de usar o niqab ou a burka não vai contribuir nada para o derrube do plafond de verre. Ou seja, neste processo que me recorda a proibição dos minaretes na Suíça, vejo apenas islamofobia mal disfarçada e pânico face a uma imaginada ameaça do Islão».

Com a mesma opinião, diz o Daniel de Oliveira no «Arrastão» que não tem qualquer esperança «de que aqueles que se dizem liberais percebam a contradição de defender a liberdade e pôr o Estado a determinar como cada um se pode vestir». E que «aqueles que dizem defender a liberdade compreendam que ela nem sempre nos é confortável», enquanto espera que «ao menos percebam qual é, tendo em conta o reduzidíssimo número de mulheres que em toda a França usa o véu integral, o objectivo desta encenação».
E conclui o Daniel de Oliveira:
«Um ataque a esse valor que eu gostava de acreditar que ainda é europeu: o da liberdade individual. E essa liberdade individual inclui o direito a ser conservador. Posso não gostar. Mas a liberdade dos outros é para isso mesmo: para aquilo que eu não gosto nos outros».

Ambos sem dúvida cheios de razão.

Mas depois, dei por mim a pensar: até que ponto são válidos estes argumentos?
Para já é absolutamente irrelevante estarmos a falar num «reduzidíssimo número» ou «numas centenas» de mulheres.
Num caso como este, bastaria uma única.

Uma coisa parece comum aos dois argumentos: que estaremos perante um ataque à liberdade individual. Se uma mulher decide, por vontade própria, vestir uma burca, deve ser livre de o fazer. E ninguém tem o direito de coarctar essa liberdade.

Mas será assim tão simples?
É então que dou comigo a pensar que são estes argumentos que, por muito que estejam distantes daquilo que obviamente pensam e defendem a Palmira e o Daniel de Oliveira, acabam por ser os mesmos que são usados por aqueles que pretendem defender absurdos tão grandes como a excisão do clitóris, com o argumento de que se trata de um costume ancestral e uma prática religiosa que até tem a anuência das próprias mulheres.

Paradoxalmente, num post mais recente a Palmira indigna-se muito justamente com a notícia de que no Bangladesh uma adolescente de 16 anos foi condenada a 101 chicotadas por ter sido violada. É isso que comanda a “sharia”, a lei islâmica. E foi isso que foi determinado pela “fatwa” decretada pelo tribunal.

Ora, isto indigna-nos a todos, e não passa pela cabeça de ninguém considerar que impedir esta barbaridade seria uma violação das liberdades individuais do povo do Bangladesh. Nem muito menos passa pela cabeça de ninguém questionar se a jovem adolescente concorda com a imposição da lei islâmica no seu país e se concorda ela própria com a punição a que foi sujeita por ser uma fervorosa muçulmana.

E que não se diga que as comparações que aqui faço são «forçadas»: que uma excisão de um clitóris ou a flagelação de uma adolescente se podem comparar ao uso de uma burca.
Será que não comparam?

O que para mim está em questão é que uma burca não é uma mera e simples peça de roupa!
Uma burca é um símbolo.
E mais do que um símbolo religioso ou cultural, a burca é o símbolo da submissão da mulher, e é um instrumento do aviltamento da sua dignidade e da sua liberdade individual.

E é esse significado simbólico que está em causa.

Permitir a burca é antes de mais tolerar essa submissão e esse aviltamento e todo o simbolismo que lhe está subjacente.
E não é de forma alguma argumento questionar se foi a própria mulher que escolheu usar uma burca, por querer adoptar o seu simbolismo. Não o é, porque a dignidade e a liberdade não estão à disposição de ninguém para servir de moeda de troca cultural ou religiosa.
Nem sequer dos próprios.

A dignidade e a liberdade individual não estão à venda, precisamente porque não têm preço.
São valores éticos e civilizacionais que nos compete a todos defender, e que devem prevalecer sobre quaisquer tradições culturais ou imposições mais ou menos religiosas.

É por isso que neste debate devemos ponderar cuidadosamente o que está aqui verdadeiramente em causa: a dignidade e a liberdade individual da mulher e algo que põe objectivamente em causa esses valores.




<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com