sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009
A oblíqua palavra «tolerância»
Do debate do «Prós e Contras» dedicado ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, aos comentários mais ou menos resignados à pobreza confrangedora dos argumentos do «não», passando pelos comentários abertamente homofóbicos agora assumidos despudoradamente e às claras pelas hierarquias católicas, não pude deixar de me lembrar do «parecer» que o Prof. Júlio Machado Vaz elaborou (pro bono) e que teve a inestimável amabilidade de me entregar para melhor sustentar os argumentos das alegações do recurso para o Tribunal Constitucional do processo de casamento da Teresa e da Helena.
Para quem quiser, e quando entramos agora no 17º mês de espera por uma decisão do Tribunal Constitucional, as alegações do recurso podem ser lidas na íntegra no Blog «O Advogado do Diabo».
Por isso, não resisto a publicar aqui um excerto das palavras do Prof. Júlio Machado Vaz, que provam bem não só a sua invulgar lucidez, mas também que os mais fundamentais critérios éticos, de racionalidade e de humanismo mantêm sempre uma inegável actualidade.
*
«O casamento foi sempre uma instituição baseada em interesses económicos, alianças familiares e, sobretudo, no que se convencionou apelidar de imperativo procriativo, sinónimo de projecção no futuro de nome e posses. (Como é óbvio, falo das classes dominantes, as mais desfavorecidas tinham muitos filhos e poucos bens para dividir, razão pela qual certos especialistas lhes atribuem o duvidoso privilégio de poderem casar por amor!).
«Na segunda metade do século XIX, com a progressiva hegemonia do conceito de Amor Romântico, o panorama começou a mudar. Dessa época datam expressões como “o homem/mulher da nossa vida”, “as almas gémeas”, “viveram felizes para sempre”.
«Pese embora a clara divisão entre esfera pública e privada, com a primeira proporcionando todas as liberdades aos homens e a segunda a ser imposta às mulheres respeitáveis, promovidas (?) a assexuadas fadas do lar, o casamento passava a ter como razão primeira o sentimento.
«Acresce o surgir de outras variáveis: o direito à felicidade individual; a maior importância dada ao ambiente afectivo familiar para o crescimento de futuros adultos psicologicamente saudáveis; o estilhaçar do binómio casamento/filhos, até aí granítico.
«Um século volvido, deparamo-nos com um casamento herdeiro da ideologia burguesa, ninho de poucos filhos e aspirando a uma felicidade que não se consubstancia na resistência da instituição às intempéries da vida, mas no equilíbrio bem sucedido entre duas liberdades.
«Dir-se-ia que a metáfora adequada já não é a de um só corpo e alma e sim a de duas pessoas olhando na mesma direcção durante o maior número de anos possível. Se o projecto falhar, cada uma procurará uma nova relação conseguida, num processo que os sociólogos apelidam de “monogamia seriada”.
«A mudança de um paradigma apoiado no imperativo procriativo para outro de partilha sentimental retira força ao argumento nuclear contra o casamento homossexual - se esquecermos os interditos religiosos -, que, de resto, é cada vez menos consensual entre os heterossexuais - ter filhos passou a ser uma (doce) hipótese a contemplar e não uma inevitabilidade, quase inerente à condição humana.
«O casamento de hoje é uma relação tentada entre duas pessoas, dois afectos, duas liberdades, dois projectos de vida, muitas vezes ensaiada previamente numa experiência de coabitação.
«E não a moldura, ainda que emocional, para dois aparelhos reprodutores…
«Ouço muitas vezes reivindicar soluções diversas para realidades diversas.
«Pois bem, estou firmemente convencido que existem muito mais diferenças entre as faces da instituição casamento separadas pelos últimos cento e vinte anos do que entre os cidadãos heterossexuais, homossexuais e bissexuais, rótulos que apenas traduzem a nossa triste e preguiçosa nostalgia de melhor catalogar o mundo, ainda que no processo sacrifiquemos as cores do arco-íris ao simplismo do preto e branco.
«É tempo de substituir uma palavra tão oblíqua como tolerância pela prática fraternal da aceitação da diversidade que, biológica e psicologicamente, nos garante e enriquece o futuro».
«Acresce o surgir de outras variáveis: o direito à felicidade individual; a maior importância dada ao ambiente afectivo familiar para o crescimento de futuros adultos psicologicamente saudáveis; o estilhaçar do binómio casamento/filhos, até aí granítico.
«Um século volvido, deparamo-nos com um casamento herdeiro da ideologia burguesa, ninho de poucos filhos e aspirando a uma felicidade que não se consubstancia na resistência da instituição às intempéries da vida, mas no equilíbrio bem sucedido entre duas liberdades.
«Dir-se-ia que a metáfora adequada já não é a de um só corpo e alma e sim a de duas pessoas olhando na mesma direcção durante o maior número de anos possível. Se o projecto falhar, cada uma procurará uma nova relação conseguida, num processo que os sociólogos apelidam de “monogamia seriada”.
«A mudança de um paradigma apoiado no imperativo procriativo para outro de partilha sentimental retira força ao argumento nuclear contra o casamento homossexual - se esquecermos os interditos religiosos -, que, de resto, é cada vez menos consensual entre os heterossexuais - ter filhos passou a ser uma (doce) hipótese a contemplar e não uma inevitabilidade, quase inerente à condição humana.
«O casamento de hoje é uma relação tentada entre duas pessoas, dois afectos, duas liberdades, dois projectos de vida, muitas vezes ensaiada previamente numa experiência de coabitação.
«E não a moldura, ainda que emocional, para dois aparelhos reprodutores…
«Ouço muitas vezes reivindicar soluções diversas para realidades diversas.
«Pois bem, estou firmemente convencido que existem muito mais diferenças entre as faces da instituição casamento separadas pelos últimos cento e vinte anos do que entre os cidadãos heterossexuais, homossexuais e bissexuais, rótulos que apenas traduzem a nossa triste e preguiçosa nostalgia de melhor catalogar o mundo, ainda que no processo sacrifiquemos as cores do arco-íris ao simplismo do preto e branco.
«É tempo de substituir uma palavra tão oblíqua como tolerância pela prática fraternal da aceitação da diversidade que, biológica e psicologicamente, nos garante e enriquece o futuro».