quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009
«O Horror do Vazio»
Saladino, que viveu entre 1138 e 1193, foi sultão da Palestina, da Síria e do Egipto e notabilizou-se tanto pela sua ferocidade como pelo seu génio militar, principalmente nas inúmeras batalhas que travou contra os cristãos, organizados em sucessivas Cruzadas, algumas delas comandadas por Ricardo Coração de Leão.
Um belo dia estava Saladino muito descansado em Jerusalém, quando chegou um mensageiro que lhe anunciou apressadamente que um poderoso exército cristão se aproximava para vir tentar conquistar a cidade.
Conta-se (será uma lenda?) que Saladino ficou tão furioso com a notícia que acabava de ouvir que não achou nada melhor do que isto: num ápice pegou numa espada e... de um só golpe cortou a cabeça ao mensageiro!
*
Vem isto a propósito da última crónica de Mário Crespo no «Jornal de Notícias» com o título «O Horror do Vazio».
Nesta crónica Mário Crespo debruça-se sobre os temas do casamento homossexual e da eutanásia. E faz muito bem, que são dois temas «fracturantes» e é sempre intelectualmente gratificante conhecer a opinião de Mário Crespo sobre assuntos polémicos.
O pior, é que a certa altura do texto deixamos de perceber se Mário Crespo opina verdadeiramente sobre os tais temas fracturantes, ou se pura e simplesmente os critica por causa das pessoas que os defendem.
Diz Mário Crespo que «a união desejada por Sócrates, por muitas voltas que se lhe dê, é biologicamente estéril. A eutanásia preconizada por Almeida Santos é uma proposta de morte».
Mas se tivesse esperado um pouco mais antes de cortar a cabeça aos mensageiros, talvez Mário Crespo tivesse percebido como está enganado na interpretação da mensagem que lhe trouxeram.
Porque ao contrário do que Mário Crespo pensa, não é o casamento que é o mecanismo continuador das sociedades: é a família!
E é até curioso que no seu texto Mário Crespo não se refira uma única vez à família.
Facto insofismável e que, isso sim, é o mais milenar dos institutos, é que é a família quem deve merecer a consideração e a protecção mais fundamental das sociedades.
E o casamento – obviamente o casamento civil – não é mais do que a garantia da atribuição de determinada juridicidade que o Estado concede às famílias que por ela optem.
E se a família é, antes de mais, um núcleo fundamental de partilha de afectos, se significa uma assunção de compromissos mútuos e de um projecto de vida, tanto pessoal como patrimonial, o problema é que Mário Crespo parece não entender que não lhe compete – nem a ele nem a ninguém – restringir esse conceito e a abrangência da definição de família, se para isso recorre a argumentos que ele próprio não está disposto a conceder à definição de casamento, como seja a «finalidade da procriação».
É que já vai sendo altura de Mário Crespo perceber que nem o conceito de casamento está ligado à procriação (pois teria de defender a proibição de casamentos urgentes ou de pessoas estéreis), nem o conceito de procriação está ligado ao casamento (sob pena de ter de dar muitas explicações a milhares de famílias que vivem em união de facto).
Se assim é, deixa de ser eticamente defensável distinguir os cidadãos uns dos outros na sua intenção de atribuir juridicidade à sua família e discriminá-los no acesso a um bem jurídico que a Constituição coloca expressamente ao alcance de todos.
Atribuir uma “sacralização” à própria palavra «casamento» e defender a criação de «outros tipos de união» para os casamentos homossexuais, passa a ser então uma dupla discriminação:
- Primeiro porque com isso se reconhece expressamente, afinal, a utilidade, a necessidade e a legalidade da atribuição de juridicidade aos relacionamentos familiares homossexuais;
- Segundo porque isso significa um juízo apriorístico de desvalor de cidadãos de pleno direito, acusando-os de, pela sua própria natureza, estarem a «infectar» ou até a «conspurcar» um instituto que mais não é do que um simples e mero contrato de natureza exclusivamente civil. Como um contrato de arrendamento ou um contrato de compra e venda.
Mas se, ainda assim, o Mário Crespo pretender chamar ao casamento «o mais milenar dos institutos», não sei, confesso, que prestígio é que isso lhe confere ao ponto de pretender torná-lo imune à «infecção homossexual».
É que ao longo da sua «milenar vigência», o casamento não foi mais do que um triste sinónimo da oficialização do sacrifício de mulheres à prepotência dos maridos e até da sua venda em nome da consolidação de tratados políticos entre potências rivais.
Não será, decerto este tipo de casamento que o Mário Crespo defende que deve ser «o mecanismo continuador das sociedades»!
Porque a própria noção de casamento evolui, na razão directa da evolução dos critérios éticos das sociedades modernas. É por isso que este casamento que nos dias de hoje temos em Portugal não só não é «milenar» como é um «jovem de 30 anos», e deixou para trás, isso sim, a «tradição milenar» do chefe de família, da proibição do divórcio, da administração pelo marido do salário da mulher, que somente poderia reter para si os seus «alfinetes», e que nem sequer podia ser comerciante sem autorização do marido…
O que é preciso entender é que este que é «o mais milenar dos institutos» ainda terá de continuar a evoluir, sempre e uma vez mais na medida da evolução da ética civilizacional e societária.
Mas, por enquanto, nenhuma nova evolução se preconiza.
Para já, basta unicamente tornar este «milenar» casamento civil conforme com a evolução ética e civilizacional... que a nossa Constituição já reflecte!
Talvez o Mário Crespo devesse começar a habituar-se a esta ideia.
Vai é custar-lhe mais, se persistir em querer cortar a cabeça aos políticos que a anunciam à sociedade portuguesa…
*
Só mais duas palavras quanto à Eutanásia:
Chama-lhe Mário Crespo «o facilitismo da morte-na-hora» e «a recusa da continuação da existência».
Não cabem agora aqui neste texto, que já vai longo demais, grandes perorações sobre a eutanásia e as diversas formas ou denominações em que pode consistir.
Mas uma coisa é certa:
É preciso que se entenda que se a vida é um direito, não é por isso que deve ser uma obrigação.
E é preciso que se reconheça a cada cidadão a faculdade de decidir por si, pessoal e individualmente, sobre o fim desse direito, obviamente quando se reconheça a existência de determinadas condições que, caso a caso, só à ética caberá encontrar.
E é aqui que talvez resida a definição do bem mais precioso que cada um de nós pode encontrar em toda a sua vida:
- Alguém que tenha a humanidade e nos conheça o suficiente para, quando chegar a altura, nos ter um amor tão grande e tão profundo que lhe permita decidir por nós que chegou a altura de nos desligar uma porcaria de uma ficha que nos prende inutilmente a uma vida que na verdade já não existe.
A isso talvez o Mário Crespo devesse entender que não se chama «a morte-na-hora», mas sim... «a hora da morte»…