segunda-feira, 20 de outubro de 2008

 

«Ortodoxia Secularista»



Com este brilhante título João Carlos Espada escreve no «Expresso» deste fim-de-semana um artigo que lhe deve ter custado uma fortuna a publicar (que eu não acredito que alguém lhe pague para escrever tamanhas baboseiras), e onde uma vez mais demonstra que pertence àquele tipo de pessoas que pensa que para conseguir demonstrar e dar como verdadeira a maior das imbecilidades, lhe basta fazer uma citação de um idiota qualquer que antes dele já disse mais ou menos a mesma coisa.

Desta vez o Espada dedica-se a papaguear Robert P. George, um professor de Princeton conhecido pelo seu conservadorismo alucinado e que tem como principal referência biográfica ser consultor de bioética de… George W. Bush!

Então, e uma vez que já pode citar alguém, o Espada dedica-se desta vez a defender a ideia do “equívoco” de que a liberdade e o pluralismo ocidentais possam assentar numa “neutralidade moral”.
Mas atenção: o próprio Espada acaba por reconhecer que esta neutralidade tem uma “motivação nobre” e nela reside a repulsa face à intolerância e à imposição arbitrária da vontade de uns indivíduos sobre os outros».

Mas… ah! O pior é que esta coisa da repulsa da intolerância e da imposição arbitrária, diz o Espada, não são razões suficientes para ignorar «as fragilidades do neutralismo».
Como demonstrar esta cretinice, então? Oh! Nada mais simples: mesmo que não venha a propósito cita-se Karl Popper e tudo isto passa de repente a ser um belo axioma.

Mas para já há aqui um esclarecimento prévio a fazer:
Se há conceitos que se vão desgastando à luz da sua própria cretinice, não é por isso que há gente que deixa de os defender. Vai daí, muda-se-lhes os nomes… e começa-se tudo de novo.

Já assim foi com o criacionismo e o «desenho inteligente».
Certamente depois de ter lido uma citação disto (provavelmente no Reader’s Digest) o Espada decidiu ir pelo mesmo caminho: angustiado por um imenso complexo de inferioridade por não ter inteligência suficiente para deixar de ser teísta, já uma vez tinha inventado uma coisa chamada «racionalismo dogmático»; agora, como achou que não lhe ficava lá muito bem defender o fim da laicidade do Estado, resolve chamar-lhe «ortodoxia secularista» e ataca-a sob o novo nome de «neutralismo», que é aquela coisa horrível e cheia de fragilidades que nos tem incutido essa abstrusa ideia que é a repulsa face à intolerância e face à imposição arbitrária da vontade de uns indivíduos sobre os outros.
De facto para o Espada isto deve ser uma coisa absolutamente horrível!

Reparemos no seu raciocínio, que é de facto brilhante:
Para o Espada, o «neutralismo» não consegue justificar-se a si próprio. Qual a justificação para o princípio de que não devemos aceitar a imposição arbitrária da vontade de um indivíduo sobre outro? É que esta justificação, à luz do próprio neutralismo, não poderia ser neutra.

E pronto: é com este belo jogo de palavras que o Espada pensa que de um só golpe deu cabo do «neutralismo», que é como quem diz da laicidade do Estado.
Coitado do Espada, nem sequer se apercebe que o argumento já tem tantas barbas como os seus próprios neurónios. Aliás, deve ser por isso que tanto tropeçam uns nos outros.

É o mesmo e velho argumento teísta de que discriminar outra pessoa, isso sim, é que é um direito fundamental dos cidadãos: porque proibir alguém de discriminar os outros seria uma discriminação e a discriminação é algo intolerável porque significaria a discriminação de alguém que quer discriminar, e já vimos que a discriminação é inaceitável…
Bonito, não é?

O que isto quer dizer é que pior que ser burro é ser fanático. Mas pior ainda é que o João Carlos Espada é as duas coisas.
Mais do que isso, o Espada é perigoso!

Porque arrogando-se uma espécie de arauto do «moralismo» citador de autores que ele próprio não entende, o Espada dá por si a escrever coisas como esta:
«Tem de haver alguma valorização moral da pessoa individual e da sua consciência para justificar a oposição à imposição arbitrária da vontade de um indivíduo sobre outro».

Se o Espada fosse americano era muito bem capaz de se chamar Sarah Palin.
É por isso que o Espada e outros como ele são perigosos.
Porque o Espada é tão fanático que nem sequer se apercebe que esta coisa que ele afirma de que «tem de haver alguma valorização moral para justificar uma imposição» significa que o que o Espada quer verdadeiramente dizer é que quem possui essa tal «valorização moral» é… o Espada.

Mas mais: o Espada é tão burro que não se apercebe de que há uma pequena palavra inscrita no seu próprio texto que ele freudianamente esquece. É a palavra «arbitrária»!
Porque uma imposição pode sê-lo sem ser arbitrária, coisa que o Espada não percebe. Uma lei de um Estado democrático é imposta (por definição) mas não é (por definição) arbitrária.

O que o Espada nunca conseguirá entender é que um Estado pode muito bem ser «neutro» e «laico» sem ser arbitrário.
Mas para o Espada, desde que não defendam o que ele quer, todos os Estados são «arbitrários» e a sua neutralidade seria uma contradição nos seus próprios termos.
Que é como quem diz que a própria neutralidade seria… arbitrária!
Lindo!

Para o Espada, que pelos vistos defende o fim dessa coisa horrível que é «a repulsa face à intolerância» que provém da neutralidade, a solução ideal seria então acabar de uma vez com essa porcaria que é a laicidade do Estado ou a neutralidade do Estado, porque para o Espada isto significa a imposição arbitrária dessa neutralidade e isso é a imposição da vontade «de uns» contra a vontade «dos outros».

Para o Espada, o melhor mesmo seria então o contrário: isso sim, a imposição arbitrária da vontade «dos outros» contra a vontade «de uns».
Desde que o Espada, benza-o Deus, continue a pertencer «aos outros», está bom de ver…




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