terça-feira, 21 de outubro de 2008
Da Paz à Justiça
«Da Paz à Justiça» é um artigo do meu amigo Pedro Múrias, que tenho o imenso privilégio de aqui poder publicar:
Tal como a guerra é o maior dos horrores, a paz é o valor político fundamental.
As civilizações monoteístas, que nos constituíram, declaram-no com intensidade. Ao cumprimentarem-se, judeus e árabes dizem «a paz esteja contigo». O cristianismo mantém as mesmas palavras em orações.
Podemos pensar em sociedades estruturalmente bélicas em que o valor fundamental não fosse a paz, mas a vitória. Essas sociedades devem ser-nos radicalmente estranhas.
O pensamento político não podia deixar de ter a paz como tema central.
A guerra de todos contra todos, contrapô-la Hobbes ao mal necessário do monstro Leviatã que é o Estado. A paz perpétua é o objectivo expresso de Kant para os seus princípios do direito internacional e do direito público. A paz empresta valor à lei, à ordem e à soberania.
É certo que a paz preparou muitas vezes a guerra, mas essa é a dificuldade geral de as ideias se realizarem.
A paz, neste sentido literal e prosaico de ausência de guerra, é suficiente para a prosperidade de um povo. A fome e a doença são, a longo prazo, contingências naturais menores, progressivamente debeladas pelo trabalho e pelo conhecimento.
A paz, neste sentido literal e prosaico de ausência de guerra, é suficiente para a prosperidade de um povo. A fome e a doença são, a longo prazo, contingências naturais menores, progressivamente debeladas pelo trabalho e pelo conhecimento.
A paz é, pois, o bem-estar e a felicidade possível da maioria das pessoas. Fazem-lhe excepção as aberrações frequentes mas historicamente pouco duradouras de opressão generalizada, resultado normal de domínios imperiais, de totalitarismos ou da ocasional insensatez ou loucura de um monarca.
Mas mesmo um império opressor se converte com o tempo, se o tiver, numa pax romana geradora de riqueza. Neste sentido, as nossas sociedades pacíficas não são melhores para os seus membros do que as sociedades pacíficas de há duzentos ou dois mil anos. Vive-se bem numas e noutras.
É duvidoso que tenha sido significativo para a maioria das pessoas o progresso político. Foi muito mais importante o progresso técnico e económico, o «progresso» sem adjectivos.
Hoje mais do que nunca, em muitos lugares, é difícil entender que progresso político poderia ainda ser desejado.
As sociedades pacíficas mantiveram no seu interior espaços de opressão e sofrimento. Não o espaço dos fora-da-lei verdadeiros, postos voluntária ou coercivamente fora da sociedade, mas o espaço em que a própria lei enclausurava servos e párias.
As sociedades pacíficas mantiveram no seu interior espaços de opressão e sofrimento. Não o espaço dos fora-da-lei verdadeiros, postos voluntária ou coercivamente fora da sociedade, mas o espaço em que a própria lei enclausurava servos e párias.
Os vencidos na guerra, os infiéis, os bárbaros, os de outra cor, os miseráveis, os deficientes, as prostitutas, os homossexuais ora foram transformados em escravos de um senhor ou de uma terra, ora simplesmente afastados dos cidadãos plenos e, no mais dos casos, periodicamente perseguidos.
A imaginação humana ainda criou sofrimentos e opressões ao sabor do absurdo dilecto de cada lugar: canhotos, anões, mudos, cegos, nómadas, órfãos, viúvas, mães solteiras e filhos de condenados têm o seu lugar na história da injustiça, com destaque variável.
Inseparáveis destas são as distinções mais complexas entre nobres e plebeus ou entre homens e mulheres, que engendraram uma subordinação geralmente compatível com privilégios, salvo rebeldia, mas por vezes suficiente para a mais pesada opressão. Estes sofrimentos e subordinações conservaram-se em sociedades pacíficas e ordenadas, regidas pela lei, soberanas e prósperas.
A justiça política exige, portanto, mais do que a paz. E sugere inclusive actos contrários à paz, actos de revolução. Pela revolução ou pela reforma, os valores que quiseram acrescentar-se à paz foram a liberdade e a igualdade.
A justiça política exige, portanto, mais do que a paz. E sugere inclusive actos contrários à paz, actos de revolução. Pela revolução ou pela reforma, os valores que quiseram acrescentar-se à paz foram a liberdade e a igualdade.
São valores impossíveis de realizar e impossíveis até de conceber de um modo não circular que mereça concordância. A sua tradução como democracia pode ser corrompida como império do número, reduzindo-se de novo à paz do mais forte.
O processo do voto não é suficiente. Liberdade, igualdade e democracia só podem ser compreendidas como clamores por justiça, a justiça processual da decisão por todos do que a todos toca, mas também a justiça substancial da supressão dos espaços de sofrimento e subordinação com que as sociedades podem tristemente viver em paz.
O ideal político da democracia, que temos de assumir, é o ideal de eliminar leis absurdas que oprimem e subordinam, em favor de uma lei acolhedora e dignificante de todos. É um projecto revolucionário sem revolução, mas que a cada momento há-de surpreender e chocar ao propor mudanças no que parece imutável.
A paz é a justiça política mínima da estabilidade, a democracia é a justiça ambiciosa da acção.