terça-feira, 23 de setembro de 2008

 

Os casamenteiros



«Os Casamenteiros» é o título da crónica que o meu grande e ilustre amigo Mário Crespo assina no «Jornal de Notícias» de ontem.

Muito haveria a dizer sobre o texto do Mário Crespo. Mas, para lhe responder condignamente, deixaria aqui um «lençol» do tamanho de umas alegações para o Tribunal Constitucional e isso não valeria certamente a pena. Bastaria lê-las no Blog «O Advogado do Diabo», com o aviso de que o suporte de papel tem dois volumes e ocupa (com os pareceres) mais de 400 páginas.

Fico-me, por isso, somente por duas ou três afirmações do Mário Crespo, porquanto são perfeitamente típicas de quem não tem, decerto, uma visão de conjunto de todas as implicações que estão por trás do casamento homossexual e de quem defende a possibilidade da sua concretização na Ordem Jurídica portuguesa.

Diz o Mário Crespo que:
«O Parlamento vai votar a formação de pares homossexuais. É uma perda de tempo só oportuna para quem não queira discutir problemas reais do país. Há muito que pares homossexuais são banais no quotidiano nacional. Não sendo a sua existência controversa, tentar impor um "casamento" homossexual à ordem jurídica é ilógico».

Diz também que:
«A humanidade sempre manifestou consciência de que a sua existência depende da estabilidade de núcleos com capacidade reprodutiva».

E diz ainda que:
«Reafirme-se o que sempre foi entendido como casamento, que é a união formal entre uma mulher e um homem. Experimentalismos façam-nos criando uma entidade nova para diferentes uniões que até poderão vir a estruturar sociedades futuras, mas que nada têm a ver com o casamento».

Mas o Mário Crespo está enganado.
Estrondosamente enganado!
Em primeiro lugar, quanto mais não seja por força de um argumento meramente técnico-jurídico. Porque, de facto, ninguém está a «tentar impor um "casamento" homossexual à ordem jurídica», nem isso é «ilógico» ou «absurdo».
Porque se considerarmos a Ordem Jurídica portuguesa como o conjunto coerente das normas que nos regem, então o casamento homossexual não precisa de ser imposto.
Simplesmente porque... já existe!

É que no topo desse conjunto de normas jurídicas está a Constituição da República Portuguesa, e o que acontece é que as normas do código civil que definem o contrato civil de casamento estão em contradição com as normas constitucionais.
Só resta, então, pôr o Código Civil de acordo com a Constituição – e não obviamente o contrário – a não ser que esse nobre apelo à Ordem Jurídica seja feito de forma “intermitente” e de acordo com a nossa casuística concordância ou não com aquilo que nela vamos vendo estabelecido.

Em segundo lugar, e aqui reside o segundo erro do Mário Crespo, porque ao contrário do que muita gente vem dizendo, a base fundamental da estrutura de uma sociedade não é o casamento – é a família!
E a diferença é gigantesca: porque pode haver família sem casamento e até haver casamento sem família, a não ser que uma mulher entenda continuar a considerar como sua família o homem que a violenta regularmente, a quem já nada a liga afectivamente e com quem, por mero acaso, ainda se encontra casada. Pode até haver casamento na iminência da morte de um dos nubentes com objectivos meramente sucessórios, por exemplo, e não para a constituição de uma família.
É por isso que pode haver famílias com uma base heterossexual ou homossexual. Pode até haver famílias monoparentais e até famílias cujos membros sejam estéreis ou inférteis, sem que por isso deixem de ser consideradas como isso mesmo: famílias.

Por isso, quando o Mário Crespo diz que «a humanidade sempre manifestou consciência de que a sua existência depende da estabilidade de núcleos com capacidade reprodutiva», esquece-se que, se isso é verdade, esse núcleo não passa necessariamente pelo casamento. Passa pela família.
E não é por fazê-los coincidir à força que se protege ou se assegura a sobrevivência da humanidade.
Quem disser o contrário estará com certeza a pensar absurdamente que um homossexual que é proibido de casar civilmente passa de repente a ser heterossexual e a dedicar-se então à propagação da espécie...
Estão aí mais de seis mil milhões de habitantes deste planeta a demonstrar o contrário.

Voltamos então aqui à parte jurídica: é que muitas pessoas estão convencidas que o primeiro artigo da Constituição para que devemos olhar quando falamos de casamento homossexual é o artigo 13º nº 2, que proíbe a discriminação em razão da orientação sexual. Não: esse será o segundo artigo a ler.
Porque o primeiro artigo a ter em linha de conta é o artigo 36º da Constituição, que estabelece a garantia dos direitos dos cidadãos a constituir família, a contrair casamento e a ter filhos, em condições de plena igualdade.

Ora, trata-se aqui de três direitos distintos e concedidos separadamente, embora o sejam na mesma norma constitucional.
Alguém duvidará então, do direito à constituição de uma família homossexual?
Alguém duvidará de que o direito à filiação não exclui os homossexuais?
Então, qual a razão de ser da recusa do reconhecimento do terceiro dos direitos concedidos no artigo 36º da Constituição?

Se uma família heterossexual tem a opção de transformar a sua união numa realidade dotada de juridicidade, celebrando um contrato civil chamado casamento, por que motivo se recusa tal opção a uma família homossexual?
Será em razão da sua orientação sexual?
Mas isso não contraria o tal artigo 13º da Constituição, que proíbe a discriminação em razão dessa mesma orientação sexual?
Claro que sim, e uma sociedade democrática que se preze, um Estado de Direito, não pode permitir que seja feita distinção entre os seus cidadãos, qualquer que seja a razão invocada.

E, parecendo que não, sugerir como o Mário Crespo a criação «de uma entidade nova para diferentes uniões que até poderão vir a estruturar sociedades futuras, mas que nada têm a ver com o casamento», é uma forma de discriminação ainda pior do que a pura e simples proibição do casamento homossexual. Para isso, passe a expressão, mais valia estar quieto!

Criar uma realidade jurídica «ao lado» é reconhecer expressamente tanto a necessidade dos homossexuais no acesso ao casamento como a sua óbvia discriminação nesse acesso, mas criando-lhes «qualquer coisa ali ao lado» que tenha o mesmíssimo efeito, mas que não «conspurque» nem afronte «as entidades originais do corpo social que desde sempre tem constituído a base das civilizações».

Defender isso é produzir um juízo apriorístico de desvalor dos homossexuais e da homossexualidade de um modo geral. Defender esse ridículo e esse absurdo (agora sim), é pensar que os homossexuais são cidadãos que conspurcam e afrontam a sociedade em razão da sua orientação sexual.
A quem pensar isso não posso se não recomendar urgente ajuda psiquiátrica, quando mais não seja para o tratamento de um complexo de Édipo mal resolvido, ou para o ajudar a assumir qualquer espécie de freudiana homossexualidade que se vai tornando aos poucos cada vez menos latente...

À laia de conclusão, e entre o tanto que haveria para dizer, bastará talvez referir o seguinte: sinceramente não consigo descortinar onde está o motivo para tanta polémica e tanta complicação à volta de uma questão que não é mais do que o reconhecimento do acesso de um determinado grupo de cidadãos à celebração de um mero e simples contrato de natureza civil, e que nesse acesso têm vindo a ser inconstitucionalmente discriminados em razão da sua orientação sexual.

Deixar de reconhecer esse direito não defende a propagação da espécie humana, como reconhecê-lo não prejudica aqueles que a tal direito já têm acesso.

O casamento, o contrato civil de casamento, constitui um conjunto coerente de direitos e obrigações e tem implicações muito precisas e concretas na vida social e pessoal e na esfera jurídica daqueles que o celebram.
Reconhecer o acesso a esse «bem jurídico» que é o casamento a determinadas pessoas e vedá-lo a outras constitui uma forma de discriminação intolerável numa sociedade democrática.

E para quem tenha paciência, posso dar um exemplo:
Quando elaborava as alegações para o Tribunal Constitucional no processo de casamento da Teresa e da Lena, desfolhei a esmo o Código Civil e, sem qualquer preocupação de ser exaustivo, enumerei algumas das consequências que, a par das sociais e pessoais, constituem uma modificação concreta na esfera jurídica das pessoas que se casam.
Encontrei nada menos do que 41 diferenças (sendo que actualizei a 24ª em função da nova lei do arrendamento urbano) que agora enumero e que espero que o meu amigo Mário Crespo leia, uma a uma, com toda a atenção.

São diferenças que, uma vez reconhecidas, marcarão em concreto a vida de milhares de portugueses.
E isso poderá ser tudo.
Não será é, decerto, «ilógico», «absurdo» ou sequer uma «perda de tempo»...


Essas diferenças são, pois, as seguintes:

1 – Desde logo a atribuição de inteira relevância jurídica a compromissos de ordem não-patrimonial ou «moral» que sejam mutuamente assumidos e que se consubstanciam, entre outros, nos deveres conjugais de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência,
2 – bem como a possibilidade de qualquer dos cônjuges ver convenientemente sancionada qualquer violação desses mesmos compromissos por parte do outro, seja através de relevância bastante para que constituam causa de rescisão do contrato de casamento, isto é, para divórcio,
3 – seja até quando tal violação tenha consequências de ordem patrimonial que se reflicta, por exemplo, na partilha dos bens comuns do casal (como é o caso de um casamento celebrado após convenção antenupcial de comunhão de bens e em exista culpa exclusiva de um dos cônjuges no divórcio o qual, assim, não receberá na partilha mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado com comunhão de bens adquiridos),
4 – seja mesmo numa decisão judicial que decida sobre a atribuição do direito ou do destino da «casa de morada de família».
5 – Depois, porque os cônjuges são herdeiros legitimários um do outro,
6 – sendo-lhes até assegurado, em caso de concurso com mais de quatro herdeiros, o direito a pelo menos uma quarta parte da herança,
7 – e também reconhecido um «apanágio de cônjuge sobrevivo», do qual poderão advir consequências, nomeadamente no que concerne a à obrigação de alimentos provenientes dos rendimentos da herança do outro cônjuge,
8 – e ainda, também ainda em caso de morte de um dos cônjuges, determinados privilégios na preferência sobre determinados bens da herança em caso de partilha, quando em confronto com os demais herdeiros,
9 – ou também, como por exemplo, o direito a ser encabeçado no direito de habitação da casa de morada de família e no uso do respectivo recheio.
10 – Em caso de morte de um dos cônjuges, resulta como praticamente «automático» o direito do cônjuge sobrevivo a receber quaisquer pensões de sobrevivência a que eventualmente haja lugar.
11 – Ainda de particular importância se revelará o facto de que do casamento resultará inequívoco que constituem bens comuns do casal, por exemplo, o produto do trabalho de qualquer deles,
12 – e até, em casos determinados, os bens que, mesmo podendo ter sido antes considerados próprios, tenham sido adquiridos na sua maior parte com dinheiro ou bens comuns,
13 – a não ser, claro, que estejamos perante um casamento celebrado com separação de bens, mas no qual, ainda assim, e em caso de dúvida sobre a sua titularidade, está estabelecida na lei uma presunção de compropriedade,
14 – tal como também no regime da comunhão de adquiridos se encontra estabelecida uma presunção de comunicabilidade de bens móveis.
15 – Também no caso de um casamento celebrado sob o regime da comunhão de bens, a lei estabelece uma comunicabilidade dos frutos provindos de determinados bens ou direitos, ainda que tais bens estejam expressamente excluídos da comunhão.
16 – De qualquer casamento resulta que, em caso de morte, o cônjuge sobrevivo administra, em primeira análise, os bens que compõem a herança
17 – podendo, como qualquer outro herdeiro, pedir a sua partilha logo que assim o entenda.
18 – Em caso de divórcio poderá resultar uma obrigação de indemnização por danos não patrimoniais a favor de um dos cônjuges, caso o outro cônjuge seja considerado único ou principal culpado nesse divórcio.
19 – Também da possibilidade de duas pessoas se casarem resultará o concomitante direito a celebrarem casamentos urgentes ou “in articulo mortis”, com as óbvias consequências patrimoniais, morais e pessoais que dessa celebração poderão advir.
20 – Não sendo, como é óbvio, susceptível de execução específica, também da promessa de casamento incumprida, em determinadas circunstâncias, por parte de um dos promitentes, poderão resultar consequências de ordem patrimonial para o outro.
21 – Ninguém considerará despiciendas as consequências decorrentes da atribuição conjunta a ambos os cônjuges da administração ordinária dos bens comuns do casal,
22 – nem sequer as consequências de ordem exclusivamente fiscal, que decorrem do casamento.
23 – Muito menos poderão ser desprezadas as maiores regalias e possibilidades de acesso a empréstimos hipotecários por força do seu reforço garantístico e ainda do aumento da “taxa de esforço” que se exige para tal contratação, que será decorrente da conjugação dos rendimentos de ambos os cônjuges.
24 – Ainda hoje, e agora na actual formulação da legislação do arrendamento urbano, o contrato de arrendamento celebrado por um dos cônjuges passou a ser comunicável ao outro, e continua a haver importantes consequências na transmissão do direito ao arrendamento a favor de um dos cônjuges por morte do outro, nomeadamente no que se refere aos arrendamentos comerciais.
25 – Ninguém duvidará que uma das mais relevantes consequências que poderão decorrer de um casamento será a inequívoca e rigorosa estipulação legal, com as respectivas consequências, da absoluta igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.
26 – Como é do conhecimento comum, e na esmagadora maioria dos casos, cada cônjuge gozará do privilégio do acesso às regalias dos sistemas e subsistemas de saúde e de segurança social do outro cônjuge.
27 – Em caso de doença, a nenhum cônjuge é vedado o acesso às visitas hospitalares,
28 – e, mais importante do que tudo isso, resultará do facto de ser precisamente ao cônjuge a quem é cometida a responsabilidade da tomada de importantes decisões em caso de doenças incapacitantes e, quantas vezes, a decisão de desligar uma máquina de suporte artificial de vida.
29 – Ninguém poderá esquecer as consequências que de um casamento imediatamente decorrem no que se refere nas relações de afinidade com os parentes do outro cônjuge,
30 – sendo inegáveis as consequências e as valorações de ordem, pessoal, familiar e social que são necessariamente decorrentes dessa afinidade,
31 – até por que elas persistirão, claro, mesmo após o divórcio,
32 – não sendo, para além de tudo, de forma alguma desprezível o facto de que desse novo vínculo familiar resultará um alargamento no elenco dos motivos que constituem impedimentos dirimentes relativos matrimoniais.
33 – Como é ainda visivelmente usual o nosso país, a celebração de um casamento possibilita que qualquer dos cônjuges adopte o nome do outro, ou até que ambos o façam simultaneamente,
34 – do que resultarão óbvias consequências, no reforço do sentimento de identificação e de coesão familiar,
35 – para além da inegável relevância de ordem social que a maioria das pessoas ainda concede, e muito principalmente, recebe, dessa situação.
36 – Da relação familiar que o casamento transporta ainda consigo resultará a possibilidade da participação de qualquer dos cônjuges no «Conselho de Família» quando haja decisões jurisdicionais a tomar sobre menores, filhos do outro cônjuge, e com quem haja uma convivência e proximidade afectiva.
37 – Possibilidade de, na pendência do casamento, um dos cônjuges poder exigir, e até mesmo judicialmente, a contribuição do outro para as despesas domésticas, como não poderia deixar de ser referida a enorme frequência de situações em que tal necessidade decorre, em tantos casos, da própria subsistência básica do cônjuge.
38 – Ao mesmo tempo, é estabelecida na lei uma obrigação alimentícia que vincula a outras um certo e determinado número de pessoas, enumeradas e ordenadas no artigo 2009º do Código Civil, sendo obviamente muito significativo que nessa norma seja elencada logo em primeiro lugar a obrigação de alimentos que vincula os cônjuges,
39 – sendo não menos irrelevante que, ainda por força de tal norma, tal direito a alimentos persista para ambos os cônjuges, mesmo até após a dissolução do casamento.
40 – Mais, a lei ainda estabelece mais uma peculiar situação de vinculação a uma obrigação alimentícia de que será beneficiário, por exemplo, um enteado menor de um dos cônjuges que dele estivesse a cargo ou que com ele convivesse à data da morte do outro cônjuge e progenitor do menor.
41 – finalmente, e ainda no que aos alimentos diz respeito, e uma vez estabelecida a obrigação de prestação de alimentos que mutuamente vincula os cônjuges, revestirá ainda particular relevo a possibilidade que de tal obrigação decorrerá para qualquer dos cônjuges – e até mesmo, repita-se para os ex-cônjuges – que passará a ter ao seu alcance, em caso de necessidade comprovadamente urgente e inadiável, o recurso à providência cautelar de alimentos provisórios, tantas vezes, e uma vez mais, essencial à própria subsistência mais básica desse cônjuge
.


Em suma:
Decerto outras consequências haverá, pois que, como referi, esta enumeração não é exaustiva.

Mas isso não tem importância, pois que somente uma delas bastaria.
E uma só bastaria porque as pessoas não são, de facto, «uma perda de tempo»!




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