segunda-feira, 1 de outubro de 2007

 

Quando um cristão quer muito ser cientista



Não há dúvida: se há coisas que neste mundo são indubitavelmente ilimitadas, uma delas é... a estupidez humana!

No «Expresso» deste fim de semana o inefável João Carlos Espada voltou ao ataque.
Disse ele agora:
«Os ateístas escrevem com ardor e zelo, acusando a religião de ardor e zelo; os cristãos respondem com serenidade acusando o ateísmo de dogmatismo fundamentalista».

Pois é:
Por vezes a estupidez humana é tão ilimitada, tão ilimitada (olha só que redundância tão gira) que se torna até desesperante.
Às vezes até faz pena!

De facto, é até confrangedor deparar com alguém que exibe a sua fé e a sua irracionalidade em artigos de jornais, frequentemente até com orgulho (vá-se lá entender isto!), e que foge da Filosofia como o Diabo da cruz, antes preferindo aceitar dogmas imbecis (passe o pleonasmo), acatar a mitologia como ciência e adoptar meia dúzia de lendas de povos da antiguidade como referência para os seus valores éticos.

E então, o resultado é triste, muito triste mesmo: como classificar intelectualmente um cristão que «acusa» o ateísmo de «dogmatismo fundamentalista»?

Não é possível explicar a uma pessoa de «fé», a um «animal irracional», portanto, o ridículo de uma afirmação como esta que nos traz o nosso católico espadachim:
«Enquanto os cristãos sabem que acreditam, os ateístas acreditam que sabem – sem saber que acreditam»

É tão lindo isto, não é?

Basta arranjar uma frase pejada de trocadilhos cacofónicos e pronto: está arranjada uma «verdade»!
Que interessa o conteúdo da frase, se a própria cacofonia lhe dá credibilidade?

É assim como uma espécie de José Hermano Saraiva, que aparece na televisão a debitar as maiores barbaridades históricas a fingir de conta que são científicas, e com que todos os historiadores se arrepiam (quando não riem às gargalhadas), mas que as pessoas engolem só porque lhes são impingidas por uma capacidade de comunicação e por um timbre de voz que são, de facto, absolutamente invulgares.

E é isto: feito o trocadilho e a cacofonia, e ainda por cima ajudado por uma citação de Raymond Aron (a quem desta vez, estranhamente, não chamou o seu “saudoso”, talvez porque a xenofobia comece a deixar de ser assim tão bem vista), a conclusão de João Carlos Espada só podia ser uma:
- A crença dogmática na razão é «o ópio dos intelectuais».

Já lho disse aqui uma vez, mas não há raio de maneira de ele entender. Deve ser a Bíblia que tem em frente dos olhos que não o deixa ver que não existe isso de ser «demasiado racional».

Não há meio termo: ou se é racional, ou se é irracional!

Cada um que escolha uma das opções como muito bem entender.
Não pode é escolher as duas ao mesmo tempo!

Porque se pusermos no racionalismo uma «gotinha» que seja de irracionalidade, ele deixa obviamente de ser, no mesmo momento... racionalismo...
É tão óbvio que até chateia!!!

Depois, talvez por não perceber isto, e aproveitando-se da famosa afirmação de Karl Marx de que «a religião é o ópio do povo», o nosso Espada defende, portanto, e sem qualquer pejo em cobrir-se de ridículo, há que admiti-lo, que esse tal «ópio dos intelectuais» está antes na Razão, no Racionalismo, na Filosofia, na Ciência, e não já, como seria de esperar vindo de um qualquer mitómano, na «fé», na irracionalidade, nos dogmas, enfim, na religião.

Ou seja:
Talvez valha tanto a pena falar com esta gente como tentar explicar ao Bin Laden que há quem pense que não é ele nem João Carlos Espada, nem talvez Tomás de Torquemada ou Inocêncio III que sofrem de «dogmatismo fundamentalista».
Mas antes, sim, pessoas como Albert Einstein, Bertrand Russell, Carl Sagan, Simone de Beauvoir, Thomas Edison, Siegmund Freud, Marie Curie, Bernard Shaw, Stuart Mill, Nietzsche, Voltaire, Stephen J. Gould, Richard Feynman, James Watson, Francis Crick, Steven Pinker, Albert Camus, Jean Paul Sartre, Arthur C. Clarke, Stephen Hawking, Umberto Eco, Taslima Nasrin, Dan Barker, Steven Weinberg, Daniel Dennett, Sam Harris, James Randi, Richard Dawkins, David Gilmour, Christopher Hitchens...

Foi precisamente a propósito deste último, Christopher Hitchens, e do seu último livro, a que João Carlos Espada se refere como «um livro vulgar que ignora de forma surpreendente a matriz cristã da civilização ocidental», e cujo título diz aos seus leitores que é «God Is Not Great: The Case Against Religion».

Talvez seja isso que faz falta ao João Carlos Espada: algumas leituras!
Em primeiro lugar o livro de Christopher Hitchens não se chama aquilo que o Espada diz.
Tem antes o título de «God Is Not Great – How Religion Poisons Everything».

Está visto que o João Carlos Espada nem sequer leu o livro, cujo título correcto nem sequer conhece e que lhe podia ler... na capa.
Mas isso de não ter lido o livro pelos vistos não interessa para nada.
E não o impede de se dar ao luxo de lhe fazer uma «crítica literária» e de chamar «vulgar» a um livro que está actualmente entre os mais vendidos no mundo e a cujo autor o «London Observer», por exemplo, se refere como "One of the most prolific, as well as brilliant, journalists of our time".

O João Carlos Espada até poderá ver esta e outras referências quando comprar o livro para o ler: estão na sua contracapa...

Mas não foi com certeza o «dogmatismo fundamentalista» de João Carlos Espada, que já vimos que ele não tem (o Bin Laden também não, coitado) que, mesmo sem ter lido o livro o impediu de proferir esta afirmação absolutamente fantástica: que Christopher Hitchens «ignora de forma surpreendente a matriz cristã da civilização ocidental».

Gaita!!!

Confesso que já estou farto de ouvir falar nessa coisa peregrina dos «valores» ou «tradição judaico-cristã» da civilização ocidental ou, como desta vez da «matriz cristã da civilização ocidental».

Talvez seja preciso reler o primeiro parágrafo deste texto para ter alguma complacência para quem tem a ousadia de dizer tanta asneira.
O próprio João Carlos Espada tem mesmo a coragem de dizer no seu texto do «Expresso» (não, não é do «Sol»), e até na mesma frase (pasme-se!) que, no seu livro, Christopher Hitchens simultaneamente ora ignora essa tal «matriz cristã da civilização ocidental» ora a defende.

Mas desta vez não tenho qualquer problema em «perdoar» o João Carlos Espada e a «fé» com que diz na mesma frase que Christopher Hitchens simultaneamente ignora e defende a mesma coisa: afinal, já vimos que ele não leu o livro...

Mas quando o ler, o João Carlos Espada vai ver que é um livro indiscutivelmente brilhante e que se lê de um só fôlego e que (como diz a crítica do «New Yorker») "...show his teeth in the case for righteousness".
E que é um livro que, ao contrário de a ignorar, demonstra precisamente que (tal como acontece com todas as outras religiões) essa tal «matriz cristã da civilização ocidental» não passa, afinal, de um gigantesco banho de sangue, de um morticínio indizível ao longo da História dos Homens, e de uma espécie imbecil de «justificação» acrítica, irracional e dogmática para o atraso civilizacional que as religiões têm trazido à humanidade, uma «desculpa» para a homofobia, para a misoginia, para o racismo, para a xenofobia e para todas as formas de intolerância e preconceito, e até para a imposição às sociedades de condutas pretensamente morais e que não passam de um abjecto reflexo de mentes perturbadas e alucinadas por uma gigantesca tara sexual.

É este o João Carlos Espada que temos.
E que, lá do fundo do seu alucinado cristianismo, e numa estranha pulsão freudiana tem uma necessidade aparentemente patológica de atribuir ao ateísmo um «dogmatismo fundamentalista».

Desta, nem a Santíssima Trindade o livra!!!
Nem sequer se comer uma malguinha inteira de hóstias pejadinhas de transubstanciações...

É aqui que não hesito em repetir o que já aqui disse há dias numa caixa de comentários do Blog, também a propósito de leituras que, por muito que sejam repisadas, não estão, pelos vistos, ao alcance de toda a gente.

Refere-se a uma passagem do filme «Um Peixe Chamado Wanda», sem dúvida uma das melhores comédias que já vi, em que a personagem interpretada pela Jamie Lee Curtis dialoga mais ou menos assim com a personagem interpretada por Kevin Kline:

Diz ela:
- Tu és um autêntico macaco!
E ele responde:
- Ai sou? Ai sou um macaco? E tu achas que os macacos lêem Nietzsche???
E vai ela:
- Lá ler, lêem; o que acontece é que não o percebem!!!




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