segunda-feira, 21 de maio de 2007

 

O Catolicismo e a Democracia



Num artigo do «Expresso» desta semana que intitulou «A Propósito de Fátima», João Carlos Espada diz o seguinte:
«Um elemento importante do preconceito anticatólico continua a residir no argumento de que o catolicismo se opõe à democracia. Mas os factos também não corroboram esta tese».

Talvez tivesse sido melhor que o João Carlos Espada tivesse escrito isto e não dissesse mais nada. Tínhamos só ficado com pena dele e podíamos depois esquecer o assunto.
Mas o pior é que o João Carlos Espada resolveu passar à demonstração. E, como de costume, espalhou-se ao comprido, claro está!

Diz então ele que a prova inequívoca de que o catolicismo é «amigo» da democracia é o facto de que a maior parte dos trinta países que entre 1974 e 1989 transitaram de regimes autoritários para regimes democráticos eram, vejam só... maioritariamente católicos.
E põe-se a citar: fala dos dois primeiros, Portugal e Espanha; fala de seis países da América do Sul; de três países da América Central; fala das Filipinas e finalmente fala da Hungria e da Polónia.
De facto, todos eles maioritariamente católicos.

Só é pena que o João Carlos Espada se tenha «esquecido» de dizer que esses países já eram maioritariamente católicos antes de transitarem para a democracia e já eram maioritariamente católicos durante as décadas em que viveram sob os regimes autoritários anteriores, cada um deles constituindo um brilhante e salutar exemplo de convivência serena e pacífica entre os seus respectivos ditadores e a organização e a hierarquia católicas.

Deve ser por isso que o João Carlos Espada não estranha, e por isso não refere, que o Vaticano tenha um belo dia decidido excomungar Estaline (o que não o deve ter preocupado lá muito), e não tenha sequer beliscado a memória de um só dos ditadores desses países «maioritariamente católicos», de Salazar a Franco, de Pinochet a Videla.
Nem sequer de Adof Hitler ou de Mussolini, diga-se de passagem.

Mas o que, mais do que pena, é até absolutamente lamentável e revelador de uma já indisfarçável desonestidade intelectual, é que, quando falou da transição da Polónia para a democracia, o João Carlos Espada se tenha «esquecido» de falar dos muito piedosos e fanáticos católicos irmãos gémeos que actualmente a governam, e que andam a tratar de transformar a Polónia num Estado confessional e obediente a uma espécie de «sharia» cristã.
A tal ponto que já há quem comece a defender a incompatibilidade da permanência desta Polónia fanaticamente católica na União Europeia!

Mas, como se não bastasse, o João Carlos Espada escreve a seguir que «muito antes de Voltaire ter escrito sobre a tolerância, John Milton e John Locke fundaram "o dever da moral cristã"».

Desde logo, é engraçado como da formulação que dá às suas palavras João Carlos Espada parece querer encaixar Voltaire nas fileiras do seu catolicismo.
Logo Voltaire, que foi laico mais do que ninguém. Logo Voltaire, que dizia que os evangelhos tinham sido fabricados para inventar uma religião e que nem sequer acreditava que Jesus Cristo tivesse alguma vez existido!

Depois, e como se não bastasse, João Carlos Espada ainda consegue dizer sem se rir (e provavelmente sem sequer corar) que foram Milton e Locke que fundaram «o dever da moral cristã».
Ora, o que é lamentável é que João Carlos Espada não tenha encontrado na História mais ninguém que tenha sido capaz de fundar isso a que chama «o dever da moral cristã» antes de Milton e de Locke, que não só viveram 16 séculos depois de Jesus Cristo (como se ninguém antes deles soubesse o que isso era), como ainda marcaram indelevelmente a História da Humanidade precisamente pelas suas visões humanistas e profundamente racionalistas da sociedade.

Mas o que é mais lamentável ainda é que João Carlos Espada, para encontrar alguém a quem atribuir essa tal fundação do «dever da moral cristã», e mesmo assim mais de milénio e meio depois de Cristo, tenha tido o desplante e a autêntica lata de recorrer a dois autores cujas obras estão (ainda hoje) proibidas no «Index Librorum Prohibitorum» do Vaticano: a Locke, que defendia o liberalismo do “contrato social” e que, um dos mais acérrimos críticos de Santo Agostinho, defendia que a tolerância e a razão devem ser inerentes à própria natureza humana; e até a Milton, que ficou conhecido pelas suas perspectivas heréticas da religião, que defendia a poligamia e nem sequer acreditava na divindade de Cristo...

Mas, não fosse alguém pensar que o paroxismo do ridículo já tinha sido alcançado, o João Carlos Espada resolveu continuar a investir no seu lugar na Vida Eterna, firmemente persuadido de que o proselitismo só é eficaz quando é imbecil. Embora aqui esteja provavelmente cheio de razão...

Vai daí, afirma com todas as letras que foi São Tomás de Aquino quem lançou os fundamentos da «atitude liberal».
Logo o bom do Tomás que defendia a impossibilidade do conhecimento humano ou do alcance da razão sem a intervenção ou a ajuda de Deus e que, como achava que a fé e a razão são absolutamente indissociáveis, defendia que essa intervenção só era possível e materializável através da Igreja e das Escrituras, estas a quem competia definir as regras da vida em sociedade, das leis, da ética e até da estética.
De facto, dois bons democratas: o São Tomás de Aquino e o João Carlos Espada!

Finalmente, e depois disto tudo, o João Carlos Espada resolveu dar um final ao seu artigo de modo a que todos os seus leitores ficassem... tristes.
Sim porque não há nada mais triste do que uma ignorância tão profunda e até tão confrangedora...

Dá até que pensar se é a direcção do «Expresso» que paga ao João Carlos Espada pelos artigos que escreve, se é o próprio João Carlos Espada que paga para o «Expresso» lhe publicar os artigos.

Termina assim o João Carlos Espada o seu textículo:
«E o católico Alexis de Tocqueville observou, em páginas veementes, que a democracia na América não podia ser compreendida sem o contributo da fé cristã para alicerçar o ideal das limitações constitucionais ao poder político e do direito natural dos indivíduos “à vida, liberdade e busca de felicidade”».

Não há comiseração que chegue para dar ao João Carlos Espada.
É mau demais para ser verdade ver alguém defender que o ideal das limitações constitucionais da democracia americana se deve ao contributo... «da fé cristã».

Ó João Carlos Espada, pá:
Então tu não sabes que a Revolução Americana nasceu e é, antes de mais e na sua origem, a primeira consequência e a primeira concretização dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade (que se haveriam de tornar a concretizar 13 anos mais tarde na Revolução Francesa e quatro décadas depois em Espanha e em Portugal), e que esses ideais são tudo menos um contributo da «fé cristã»?
E que são – vê lá tu bem – precisamente o contrário?

Se a Revolução Americana, a Revolução Francesa e até o Vintismo em Portugal tiveram algum contributo, ele não veio da «fé cristã», pá. Ocorreram até mau grado e apesar dela, pá!
Se algum contributo essas Revoluções tiveram foi dos ideais do Iluminismo e do Racionalismo, e até de ideais de cariz vincadamente maçónicos, em franca progressão e desenvolvimento naquela época.
Já olhaste bem para os símbolos de uma nota de dólar?

Se houve coisas de que os ideais constitucionais americanos foram brilhantemente precursores, foram precisamente os princípios fundamentais da liberdade individual, da separação da Igreja do Estado, dos fundamentos do Estado laico absolutamente compatíveis com a liberdade de culto religioso – qualquer que ele seja – e que puderam proporcionar as raízes de um Estado verdadeiramente democrático e, isso sim, livre das loucuras dessa tua tal «fé cristã» como os julgamentos de Salem ou as imposições puritanas.

Mas que os teus colegas que contigo comungam nessa tal de «fé cristã», como o George W. Bush e outros que tais (para não falar outra vez dos gémeos polacos), parecem firmemente empenhados em fazer regressar, impondo as mais acérrimas formas de discriminação, homofobia e preconceito.

Mas fazes tu ideia, ó João Carlos Espada, pá, quantos iluministas, quantos racionalistas, quantos maçons, quantos livre-pensadores, quantos cientistas, quantos judeus foram julgados e barbaramente torturados em autos de fé pela Inquisição e depois imolados pelo fogo?

Contributo da «fé cristã» para «o direito à vida, liberdade e busca da felicidade»?
Ó João Carlos Espada, pá:
Deixa de fazer más figuras, rapaz.
Pede mas é a alguém que te leia os artigos antes de os mandares para o «Expresso» para publicação.
Vê se atinas, pá!




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