segunda-feira, 16 de abril de 2007
O Templo de Salomão
O relator do polémico acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que condenou o jornal «Público» a pagar uma indemnização de 75.000 euros ao Sporting Clube de Portugal por uma notícia que, embora verdadeira, foi considerada ofensiva do «crédito, do bom nome e da reputação» daquele clube, foi o juiz conselheiro Salvador da Costa.
Fiz dezenas e dezenas de julgamentos com o juiz Salvador da Costa no tribunal de Loures.
Por isso, conheço muito bem a sua maneira de trabalhar e sou o primeiro a reputar-lhe uma competência muito, mas mesmo muito acima da média, aliada a um sentido de justiça invulgar entre os seus pares.
Tenho comprado os seus sucessivos «Códigos das Custas Judiciais», cujas anotações são preciosas para a sua compreensão global e integração concreta no âmbito de todo o direito processual.
Dada a enorme consideração que por ele tenho, pedi-lhe que me autografasse o último desses códigos numa conferência que deu precisamente sobre a reforma das custas judiciais, e a que não me passou pela cabeça faltar, pois bem conheço a profundidade dos seus conhecimentos técnicos do direito e o quanto com ele podia aprender.
Acho que posso ilustrar o que penso do juiz Salvador da Costa com o relato deste caso que tive e que ele julgou:
Era uma acção de despejo intentada por mim, como representante do senhorio, com o fundamento de que o inquilino não habitava a casa arrendada.
Competia-me fazer a prova, sempre difícil nestes casos. Tinha requerido que o tribunal pedisse os consumos de água e electricidade às respectivas companhias, mas os elementos recebidos não eram inequivocamente esclarecedores de que a casa estivesse desabitada, principalmente tendo em conta o período que estava em questão.
Depois de terem sido inquiridas as minhas testemunhas, sucederam-se as testemunhas do inquilino, que juravam todas a pés juntos que ele morava, e sempre tinha morado na casa, que lá o visitavam, que ainda na véspera tinham lá estado a jantar e, enfim, o costume.
Claro que as divergências entre os depoimentos das testemunhas eram por demais evidentes e até risivelmente contraditórios.
Afinal o inquilino habitava ou não na casa? O que estaria a pensar o juiz?
Eu bem podia ter requerido uma inspecção judicial à casa. Mas, de facto, como não sabia o que lá se ia encontrar, seria um enorme disparate técnico e estratégico fazê-lo.
O que é certo é que perante tantas discrepâncias nos depoimentos das testemunhas de um e outro lado, eu já estava mesmo a ver o meu caso a ir por água abaixo por não conseguir fazer uma prova segura e inequívoca, um ónus que, por lei, me competia.
Fiz as minhas alegações finais, o Colega da outra parte fez o mesmo, e tirámos as agendas para marcar a data das respostas aos quesitos.
Mas, qual não foi o nosso espanto, quando o juiz Salvador da Costa tomou uma atitude que nunca vi outro juiz tomar neste quase quarto de século:
Pediu simplesmente ao funcionário judicial que lhe chamasse um táxi, e disse a ambos os advogados que o seguissem nos seus carros, acompanhados dos respectivos clientes.
E lá fomos uns atrás dos outros até à casa.
Lá chegados o juiz ordenou ao inquilino que abrisse a porta, e entrámos todos.
O juiz Salvador da Costa percorreu a casa quarto por quarto e, claro está, fez-se luz: a casa estava completamente vazia e obviamente desabitada.
Lembro-me que olhou somente para o inquilino, meio de soslaio, e não resistiu a dizer-lhe com indisfarçada ironia:
- Então e o senhor onde é que dorme?...
Depois, sem esperar pela resposta, virou-se para mim e para o Colega e disse-nos simplesmente:
- Respostas aos quesitos amanhã mesmo, às 14 horas; está encerrada a audiência.
Escusado será dizer que escassa meia dúzia de dias depois já tinha recebido a sentença a decretar o despejo. Nem é preciso dizer que o inquilino nem sequer recorreu.
Pois bem:
Foi este o mesmo juiz, por quem eu tinha (e tenho) tanta consideração e indiscutível confiança no seu rigor técnico mas, muito principalmente, no seu elevado sentido de justiça, quem relatou o polémico acórdão que condenou o jornal «Público» pela publicação de uma notícia verdadeira.
Como pode ter isto sucedido?
Como pode o juiz Salvador da Costa ter proferido uma decisão que, a fazer escola, poderia até, e em última análise, institucionalizar a censura e ferir de morte direitos tão fundamentais como a liberdade de imprensa ou de expressão, que ele hierarquizou abaixo do «direito à integridade moral ao bom nome e à reputação»?
Bolas! É que a notícia era verdadeira!!!
A resposta parece até tentadoramente simples para quem conhece a forma como tantos juizes pensam e decidem em Portugal: fazem-no simplesmente porque... lhes parece!...
Será que foi isso que sucedeu com o juiz conselheiro Salvador da Costa e com os seus ilustres colegas subscritores do acórdão?
Não quero crer! Até pelo que acima relatei.
Mas o que é facto é que, com excepções tão honrosas que se contam pelos dedos de uma mão, na sua esmagadora maioria os juizes, talvez em todo o mundo, acabam invariavelmente a pensar que são uma espécie de reencarnação de Salomão.
Às vezes, logo às primeiras impressões «qualquer bom juiz» já está a ver perfeitamente quem ali tem razão e quem ali veio fazer marosca.
E o instinto de um juiz, está claro, nunca falha.
De repente, aquela sala não é já uma sala de audiências: é um autêntico Templo de Salomão, onde a justiça é servida por quem, lá do alto, está absolutamente ciente de que ao fim de algum tempo de experiência profissional está já dotado de uma clarividência quase esotérica para a análise dos casos e das pessoas que desfilam à sua frente.
Então, bem sabendo que tem nas suas mãos a vida ou a liberdade de uma pessoa, um juiz olha para um caso e, num golpe de lucidez, vê imediatamente como «lhe parece» que ali pode ser feita justiça.
Depois é simples: para dar a sentença é só encaixar os factos e o direito na convicção que já foi formada.
Não quer isto dizer, como é óbvio, que todos os juizes raciocinem assim.
Nem muito menos dizer que algum deles seja incompetente ou desonesto, e muito menos que não tenha sentido de justiça.
Não: na sua esmagadora generalidade, muito antes pelo contrário.
E até quanto ao sentido de justiça, têm-no e é muito.
Ele pode é às vezes não ser coincidente com os factos, com a lei e até com a convicção ou com os sentimentos da generalidade das pessoas.
Mas, bem vistas as coisas, afinal o que é que isso interessa?...
De repente, aquela sala não é já uma sala de audiências: é um autêntico Templo de Salomão, onde a justiça é servida por quem, lá do alto, está absolutamente ciente de que ao fim de algum tempo de experiência profissional está já dotado de uma clarividência quase esotérica para a análise dos casos e das pessoas que desfilam à sua frente.
Então, bem sabendo que tem nas suas mãos a vida ou a liberdade de uma pessoa, um juiz olha para um caso e, num golpe de lucidez, vê imediatamente como «lhe parece» que ali pode ser feita justiça.
Depois é simples: para dar a sentença é só encaixar os factos e o direito na convicção que já foi formada.
Não quer isto dizer, como é óbvio, que todos os juizes raciocinem assim.
Nem muito menos dizer que algum deles seja incompetente ou desonesto, e muito menos que não tenha sentido de justiça.
Não: na sua esmagadora generalidade, muito antes pelo contrário.
E até quanto ao sentido de justiça, têm-no e é muito.
Ele pode é às vezes não ser coincidente com os factos, com a lei e até com a convicção ou com os sentimentos da generalidade das pessoas.
Mas, bem vistas as coisas, afinal o que é que isso interessa?...