sexta-feira, 2 de março de 2007

 

A sociedade está a emancipar-se da Igreja



A excelente entrevista de Moisés Espírito Santo à «Visão».


Catedrático da Universidade Nova de Lisboa, Moisés Espírito Santo é uma das sumidades nacionais em Sociologia das Religiões, Sociologia Rural Aprofundada, Sociologia da Vida Quotidiana e de Etno-Sociologia das Sociedades Mediterrânicas.
Além da sua obra de referência, A Religião Popular Portuguesa, e de inúmeros artigos e ensaios em revistas científicas, é autor de autor de mais dezena e meia de livros – incluindo o Dicionário Fenício-Português com10 000 vocábulos das línguas e dialectos falados pelos Fenícios e Cartagineses desde o século XXX a.C..

O resultado do referendo de dia 11 pode ser interpretado como uma perda de influência da igreja católica na nossa sociedade? A sociedade é agora mais laica ou, ao votar no «sim», a atitude do votante foi mais funcional e pragmática do que de convicções religiosas?

- A Igreja Católica já não vinha a ter a influência que tivera outrora sobre os votos dos católicos, desistindo de entrar em lice.
Agora foi o princípio da moral católica – imposta por lei a todos – que se afundou. Até porque, entre os que se dizem católicos e os que praticam de facto o catolicismo (entenda-se a prática dos 7 sacramentos «indispensáveis para a salvação» segundo a Igreja), a diferença é enorme: 80% dos portugueses dizem-se católicos, enquanto apenas entre 15 a 20 % praticam.
Isto quer dizer que a sociedade se vai autonomizando da moral e da dogmática católicas (sem deixar, eventualmente, de ser cristã). Esta votação foi um combate entre a moral católica e a moral laica. A Igreja empenhou-se totalmente no «não» (com os seus políticos confessos ou discretos e com todas as suas instituições, da Opus Dei aos movimentos paroquiais).
Desde há anos que vinha a preparar-se, discretamente, contra a IVG. Alguns párocos ou confessores vinham ameaçando de que recusariam a comunhão e o enterro católicos aos crentes favoráveis ao aborto.
Mas, porque a ameaça de excomunhão já não resulta, a hierarquia dizia distanciar-se desses «excomungadores» que, aliás, se baseavam no Código de Direito Canónico que é a lei obrigatória da Igreja Católica (para o aborto, nºs. 2270-2274 do Catecismo). Os «excomungadores» até têm razão, «lei é lei ou mude-se a lei».
Já não resultando a excomunhão, o único slogan com alguma eficácia em que a Igreja se empenhou a fundo foi a «defesa da Vida». O aborto é proibido «desde a concepção», diz o Catecismo e disse a propaganda do «não»; mas, confundir o princípio de vida existente num óvulo com a vida humana é um disparate científico que qualquer pessoa reconhece.
O que a sociedade portuguesa demonstrou nas urnas (com muito atraso relativamente à Europa) é que ela se está a emancipar da moral católica (veja-se a percentagem de católicos que se divorciam) e que se laiciza, sem deixar de ser expressamente cristã: «A César o que é de César e a Deus o que é de Deus» (Mateus 22-21), isto é, à Ciência o que é o seu domínio e a Deus o que releva da Fé duma consciência esclarecida.

Podemos falar num poder político, crescentemente laico?

- Vamos. É a força da modernidade globalizante e da democracia. Se os políticos quiserem ser verdadeiramente «modernos», «democráticos» e «europeus» têm de legislar independentemente dos ditames duma religião ou Igreja (por mais dignas de respeito que sejam).
As sociedades modernas recusam que uma igreja imponha os seus critérios morais, matrimoniais e sexuais a toda a sociedade, longe da Inquisição em que ela tinha o monopólio das fórmulas de religião e de moral matrimonial e sexual.

No seu entender, em que domínios da sociedade e da esfera pública é que ainda existem ainda «bastiões» da igreja católica?

- No conceito tradicional de família. É aí que a Igreja Católica se entrincheira para manter a sua influência social (diferentemente doutras igrejas cristãs).
Mas também está a perder. A sociedade reproduz-se pelo triângulo pai-mãe-filhos, uma lei biológica e universal que implica a afectividade. O problema é que há tantos modelos de família e tantas constelações de afectos como culturas e sub-culturas.
O conceito católico de família fundada numa união heterossexual e indissolúvel não é bíblico (a família bíblica era poligâmica, não era triangular e era patriarcal); nem é crística (Jesus nunca se referiu à organização familiar nem à sexualidade).
A concepção católica de «família cristã» (triangular e indissolúvel) é posterior à Idade Média.
Pretender estender a todo o universo, na modernidade, uma única concepção de família (casal indissolúvel, afectos restringidos a este casal e respectivos filhos, adopção dentro deste casal indissolúvel, etc.) é uma ilusão etnocêntrica e uma prepotência cultural (muito pouco cristã).
Porque é que a Igreja se entrincheira aí? Porque é o único modelo familiar que garante a reprodução do catolicismo tradicional que, este, não necessita de conversão individual e se reproduz, exclusivamente, de pais para filhos, num meio familiar triangular e indissolúvel.
Enquanto isto, o cristianismo original, evangélico ou protestante, é individualizante e alheio às pressões da organização afectiva familiar.

A sociedade portuguesa está preparada e aberta para se lançar a discussão em torno de questões como a eutanásia, a criação de embriões para aproveitar células estaminais com fins terapêuticos e de investigação, os casamentos gay e a adopção por casais homossexuais?

- A sociedade portuguesa está preparada para aceitar toda a informação científica, sociológica e humanista. A Escola e os «média» também servem para isso.
A percentagem de gente analfabeta e incapaz de perceber a informação já é diminuta. O problema é a manipulação moralista.
Mas há o princípio do «direito universal à felicidade» que é consensual. A investigação científica, a eutanásia e o casamento entre pessoas do mesmo sexo entram neste «direito universal à felicidade».
A união gay choca contra o casamento tradicional? Mas o valor da virgindade das noivas também caducou e o direito ao divórcio (condenado pela Igreja) já é consensual.
A Igreja Católica poderá excomungar o casamento gay mas fá-lo à revelia de Jesus Cristo que nunca se referiu ao casamento e à sexualidade, enquanto o sacramento católico do matrimónio («indispensável para a salvação» dos amantes e progenitores) data do séc. XII.
Se as explicações científicas prevalecerem sobre a moral (que é um produto histórico e relativo), se se avançar o «direito de todos à felicidade» (sem prejuízo de ninguém) e se a sociologia do casamento for bem explicada, toda a sociedade aceitará essas reformas, quer a hierarquia eclesiástica queira ou não.

A Igreja cairá na tentação de tentação de cerrar fileiras para não deixar passar estas questões?

- No nosso tempo ninguém se pode opor à Ciência nem ao «direito de todos à felicidade».
Lembro que a Igreja Católica se opôs à dissecação de cadáveres (hoje autópsias) até ao séc. XVIII. Até ao séc. XX excomungou os que se propunham à cremação.
E cedeu imenso à laicidade dos Estados depois da Encíclica Sylabus (1864) que condenou o socialismo, republicanismo, o livre pensamento, a liberdade religiosa, a difusão da Bíblia?
Quem pode recusar o princípio da «Ciência para a Vida»? Ou que alguém queira morrer em paz e sem sofrimento? Ou que duas mulheres ou dois homens tenham os mesmos direitos que os outros de serem felizes sem prejudicar ninguém?
Só por inveja e sobranceria (que são anti-cristãs!...).
A hierarquia pode cerrar fileiras contra essas causas justas mas a sociedade informada com os argumentos científicos e sociológicos não a seguirá.

No plano político, para o PS a «causa» acabou com o aborto ou pensa que a maioria parlamentar estará disposta a «comprar» outras guerras?

- Não estou dentro dos planos do PS. No entanto, se ele se propõe modernizar o País não deixará para trás estas questões iniludíveis da modernidade.
São questões que não custam dinheiro, dão boa imagem ao País, favorecem a tolerância e a integração social, satisfazem as minorias e não prejudicam ninguém.
Felicidade sem custos!
Porquê e onde «comprar» outras guerras? Para «guerras», a questão económica basta.
Que melhores «bandeiras» pode deixar na História um partido do que resolver essas questões «fracturantes» que favorecem a solidariedade nacional e sem custos económicos?

Os resultados do referendo vão obrigar os partidos de direita a reflectir sobre a forma como encaram as chamadas questões «fracturantes»?

- Os partidos da direita já estão a reflectir sobre o modo de fazer oposição. Veja-se as posições de alguns membros insignes do PSD como José Júdice que até já se questionam sobre a utilidade do seu partido!
Se não melhorarem, desaparecem.
Depois da derrota do «não», que justificações podem encontrar o PSD e o CDS quando o seu eleitorado constatar que o «sim» só melhorou a condição das mulheres e que o respeito pela Vida ficou incólume?
Fazer oposição não é apenas ser «do contra». O eleitorado espera que os partidos resolvam, pelo melhor, as questões «fracturantes» e respondam, pelo melhor, ao movimento inelutável da maré da modernidade.
A História está repleta de memórias de partidos que morreram por se tornarem inúteis.
Nós sabemos que o eleitorado português nem sempre se tem regulou pela reflexão individual: seguia os chefes carismáticos, premiava a «imagem» em menosprezo dos méritos e das realizações, mas isso está a acabar.
O «sim» ao aborto é o começo duma nova atitude, entre nós, de o eleitorado decidir pelo pragmatismo e não pelo carisma dos chefes tradicionais.




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