quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007
O Acórdão da Relação
O Tribunal da Relação de Lisboa acabou de proferir o acórdão do recurso interposto pela Teresa e pela Lena do despacho do Conservador do Registo Civil e da sentença do Tribunal Cível de Lisboa que indeferiram o seu processo de casamento.
Como (infelizmente) já se esperava, o Tribunal da Relação também indeferiu a pretensão da Teresa e da Lena.
Com fundamentos, afinal, muito simples:
- Na ordem jurídica portuguesa a norma do artigo 1.577º do Código Civil está conforme os princípios constitucionais;
- O casamento não é a única forma de constituir família.
Contudo, e paradoxalmente, estas conclusões não parecem estar de acordo com a fundamentação que o próprio acórdão invoca.
De facto (e citando até Jorge Miranda e Rui Medeiros), o acórdão é claro a considerar que:
«O casamento não é, pois, garantido como uma realidade abstracta, completamente manipulável pelo legislador e susceptível de livre conformação pela lei. Pelo contrário, como é próprio de uma garantia institucional, não faz sentido que a Constituição conceda o direito a contrair casamento e, ao mesmo tempo, permita à lei ordinária suprimir ou desfigurar o seu núcleo essencial».
Como se este paradoxo não bastasse, continua o acórdão do Tribunal da Relação:
«De igual forma, o Tribunal Constitucional, no seu acórdão nº 590/2004, de 6 de Outubro, veio sustentar que “quanto ao direito a casar, pode dizer-se que este comporta duas dimensões. Por um lado, consagra um direito fundamental, por outro, é uma verdadeira norma de garantia institucional”».
Depois, e a propósito do artigo 36º da Constituição – que estabelece que «todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade» – afirma o acórdão que esta disposição constitucional consagra dois direitos distintos (o direito de constituir família e o direito a contrair casamento) e considera (e bem) que estes direitos não se confundem.
Assim, e tendo em vista esta distinção, o Tribunal da Relação conclui que, uma vez que, vivendo em união de facto, nada impede as recorrentes de constituírem família (obviamente uma com a outra) só pelo facto de serem homossexuais, não se verifica qualquer violação à norma constitucional que lhes garante esse mesmo direito de constituir família.
Mas, e estranhamente, o Tribunal da Relação parece esquecer-se que é a mesmíssima norma constitucional que garante às recorrentes o direito a constituírem família que lhes garante também o direito... a contrair casamento em condições de plena igualdade...
Finalmente, o Tribunal da Relação fala no «Princípio da Igualdade» estabelecido no artigo 13º da Constituição, que impede qualquer tipo de discriminação entre os cidadãos, nomeadamente em razão da sua orientação sexual.
Só que o acórdão não resiste a entrar no pantanoso campo (tão típico de quem lhe repugna a consagração constitucional deste princípio e por isso tudo procura para não o aplicar), da consideração de que o princípio da igualdade não impede que o legislador faça distinções entre os cidadãos, desde que essas distinções tenham «fundamento material bastante».
Ora, e como é óbvio, e como não podia deixar de ser, o acórdão da Relação não explica qual é este «fundamento material bastante» que, pelos vistos, se sobrepõe às consagrações constitucionais da proibição da discriminação dos cidadãos em razão da sua orientação sexual e do direito a contraírem casamento e, assim, os impede de celebrar um mero contrato de natureza exclusivamente civil que tem como simples objecto não mais do que a liberdade de dois cidadãos de «constituírem uma família em plena comunhão de vida».
Como nem sequer explica quem numa qualquer sociedade está autorizado a definir quais são, afinal, os «fundamentos materiais» que são «bastantes» para se sobreporem aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos que merecem dignidade de consagração constitucional.
Como não podia deixar de ser, deste acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa foi já interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.