quinta-feira, 23 de novembro de 2006

 

O Paradoxo Sexual da Opinião



Descobri no «Expresso» um artigo de opinião intitulado «O Paradoxo Sexual do Casamento» da autoria de um tal João Espírito Santo, identificado como «advogado e docente universitário».

Constata a certa altura o mestre opinador que enquanto a instituição do casamento está em crise e enquanto os heterossexuais parecem preferir cada vez mais a união de facto, os homossexuais reclamam para si o direito ao casamento.

Depois de lamentar a «partilha de informação sobre a situação legislativa de outros países quanto à matéria» que aquilo a que chama «a rede mundial» tem vindo a propiciar, o docente universitário veio advogar:
«A tendência social heterossexual para a união de facto compreende-se... afinal, no direito português vigora um regime jurídico da união de facto que permite aos paracônjuges todas as vantagens civis do casamento, sem os respectivos inconvenientes».

Como não podia deixar de ser, depois de uma tirada tão iluminada como esta, a que uma inspiração provinda do seu próprio nome não poderá ser estranha, continua o mestre-escola que:
«os pares homossexuais portugueses têm já as vantagens civis do casamento, sem que suportem os respectivos gravames».

Então, decerto temendo a estupefacção que as suas palavras pudessem causar, e para que não restassem as mínimas dúvidas sobre onde quer chegar com o seu brilhante texto, conclui esplendorosamente o advogado e docente universitário:
«A reivindicação homossexual é, entre nós, mais uma questão de afirmação de um princípio — de gay pride — do que de fundo» e do que «algo com significado material».

Vejamos:
Não vou cometer a tremenda injustiça de pensar que este João, iluminado pelos ventos do Espírito Santo, é um advogado ou um docente universitário incompetente.
Assim sendo, e sendo competente, saberá o ilustre e discente causídico, dentro da sua inquestionável e indiscutível competência, que transmitirá com orgulho aos seus alunos e que no foro exibirá, ufano, em representação dos seus clientes, que a persistente falta de regulamentação do Regime Jurídico das Uniões de Facto (Lei n.º 7/2001 de 11 de Maio) significa que, na prática, os efeitos da vida em união de facto e os benefícios mútuos para os respectivos "companheiros" não têm nada de parecido com aquilo a que chama «as vantagens civis do casamento».

Por outras palavras, não tenho quaisquer dúvidas que o Dr. Espírito Santo ensinará aos seus alunos que se num casamento qualquer dos cônjuges pode exigir judicialmente do outro uma contribuição para as despesas domésticas e que, mesmo em caso de divórcio, lhe pode pedir alimentos, isso já não acontece na união de facto.

Também não tenho dúvidas que o Dr. Espírito Santo advogará em tribunal que qualquer cônjuge tem, em caso de divórcio, uma palavra a dizer sobre o destino da casa de morada de família, ou até sobre a sua venda ou qualquer outra forma de alienação, ainda que tal casa seja bem próprio do outro cônjuge, enquanto nada disso se passa na união de facto.

Imagino até o Dr. Espírito Santo a arengar numa aula aos seus alunos que em caso de morte de um dos cônjuges o outro tem direito a uma pensão da Segurança Social, e a explicar-lhes, coitados, que na união de facto isso só acontece se o companheiro sobrevivo demandar judicialmente o Centro Nacional de Pensões, se conseguir demonstrar que necessita dessa pensão para sobreviver, que não tem quaisquer outros meios de subsistência, que fez prova de uma coisa chamada «incapacidade de subsistência» e que nenhuma das pessoas da sua família tem possibilidades de lhe prestar alimentos.

Depois, calculo que o Dr. Espírito Santo advogue aos seus clientes que na esmagadora maioria dos casos só o casamento proporciona aos cônjuges o acesso a sistemas ou sub-sistemas de saúde e de segurança social, que só o casamento franqueia as portas de um hospital para um apoio eficaz a um cônjuge doente, e que só o casamento possibilita o acompanhamento de um filho do outro cônjuge, seja hospitalar seja escolar, sem que ninguém faça perguntas.

Um dia que publique uma obra académica na Universidade onde é docente, o Dr. Espírito Santo não se esquecerá de explicar que no caso de uma doença incapacitante grave, só no casamento o cônjuge é chamado a decidir sobre o desligar de uma máquina de suporte de vida, por exemplo e que numa união de facto um companheiro de uma vida tem menos a dizer que um sobrinho que venha da terra e mande desligar a máquina só para receber a herança mais rapidamente ou até para receber também o seguro de vida!

Também não me passa pela cabeça que o Dr. Espírito Santo não explique a um cliente que lhe apareça lá no escritório que só em caso de casamento o cônjuge sobrevivo é herdeiro legitimário, tal como os filhos (ou, na falta destes, os pais), e tem mesmo um direito especial, por exemplo, a preferir na herança da casa que foi da família.

Ora bem:
Se o Dr. João Espírito Santo (faço-lhe justiça) sabe bem tudo isto, então só posso concluir uma coisa:
Mais abjecto ainda que a homofobia, a discriminação ou o preconceito, é não ter a coragem, a verticalidade e a hombridade de, ao menos e apesar de tudo, os assumir, antes preferindo, sob a invocação de um título académico ou de uma profissão, a cobardia infame de os disfarçar sob a capa de uma pretensa opinião técnica.




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