segunda-feira, 13 de março de 2006

 

A Tradição Judaico-Cristã



A propósito de tudo e de nada, sou frequentemente confrontado com uma coisa curiosíssima a que se convencionou chamar «tradição judaico-cristã».
Com estas singelas palavras muita gente procura justificar dogmas e preconceitos envergonhados, que frequentemente não tem sequer coragem intelectual para assumir devidamente.
Com a recente mediatização da iniciativa do casamento entre pessoas do mesmo sexo, então foi um «ver se te avias».

Foi à procura do verdadeiro significado dessa tal tradição tão portuguesa que é a «judaico-cristã», que fui descobrir (in «Diário da História de Portugal», de José Hermano Saraiva e Maria Luísa Guerra) alguns relatos de acusações e prisões feitas pela Santa Inquisição em Portugal, entre os anos de 1553 a 1557, tudo devidamente registado e catalogado.
Decerto terá sido em nome dessa «tradição judaico-cristã» que, pelos vistos, hoje tanta gente pretende preservar e em nome de quem persiste em promover os seus valores pessoais (que sobranceiramente, alguns, consideram superiores aos valores dos outros), que tantos desgraçados foram presos, torturados e depois imolados pelo fogo.

As acusações e o clima de terror e de medo que deixam adivinhar na sociedade portuguesa da época, revelarão também, certamente, essa mesma «tradição judaico-cristã».
Eis alguns desses relatos:

- 20 de Setembro de 1553: António Correia denunciou Duarte Fernandes por não comer toucinho:
- 12 de Janeiro de 1554: Diogo Antunes, estudante dos jesuítas, disse que foi a casa de um calceteiro e que este tinha na parede uma estampa com um santinho com teias de aranha;
- 23 de Janeiro de 1554: Compareceu Gomes de Leão, que denunciou o licenciado António Gonçalves, que disse que gostava mais de forcas que de crucifixos;
- 6 de Junho de 1554: Compareceu Paula Gomes que denunciou o marido Pedro Gonçalves, que disse que não sabia se havia Cristo;
- 18 de Junho de 1554: Compareceu o ourives Pedro Rodrigues por ter dito que certas mulheres iam à romaria da Senhora da Luz menos por devoção do que por poucas vergonhas;
- 31 de Janeiro de 1555: Compareceu Baltazar Gomes, ourives, que denunciou um flamengo que não tirou o barrete quando passava diante da cruz;
- 9 de Março de 1555: O padre Luís Neto, capelão da Sé, acusou um inglês chamado Ricardo, que disse que o Papa canonizava os santos por dinheiro;
- 9 de Setembro de 1555: João de Paris, relojoeiro francês, denunciou o inglês Marcos, mestre da Nau, que disse que não era preciso rezar aos santos, bastava fazê-lo a Deus;
- 17 de Setembro de 1556: Graça Dória denunciou Mécia Vaz por dizer que no mundo só há nascer e morrer;
- 21 de Janeiro de 1556: André Pires, padre de Sarzedas, denunciou António Rodrigues por ter dito que Nossa Senhora era judia;
- 16 de Fevereiro de 1556: O jesuíta João Dício acusou o flamengo Reiner, lapidador de pedras, por ter dito que era mais virtuosa a vida dos casados que a dos religiosos;
- 26 de Março de 1556: Ascenso Fernandes, denunciou Pedro de Loreto, carpinteiro francês, por comer carne à sexta-feira;
- 22 e Abril de 1556: Francisco Gonçalves denunciou Rodrigues Álvares, escrivão, por vestir aos sábados pelote, calça preta, boas botas e roupão esverdeado, com pesponto de seda e alamares, ao passo que nos dias santos traz só gabão de mangas curtas;
- 10 de Julho de 1556: Fernando Afonso denunciou dois hereges de Ponte de Lima, que disseram que a hóstia era apenas pão;
- 4 de Agosto de 1556: Francisco Dias denunciou a mulher, dizendo que era judia;
- 11 de Janeiro de 1557: Gonçalo Pereira denunciou o mouro Cosme, de Sesimbra, por ter dito que Nossa Senhora não era virgem;
- 30 de Abril de 1557: Manuel Borges denunciou António Gonçalves por ter dito que dormir com uma mulher não era mal nenhum;
- 4 de Agosto de 1557: O licenciado Garcia Mendes de Abreu acusou um cristão-novo de dizer sobre a virgindade de Nossa Senhora o seguinte: «como é que se pode tirar a gema ao ovo sem o quebrar?»;
- 29 de Setembro de 1557: Compareceu Gomes de Abreu e disse o seguinte: «quando há dois anos a nau S. Bento vinha da Índia e naufragou, deram à costa do Natal e o denunciante disse “preze a Deus que me leve a terra de cristão para eu morrer lá”. E isto foi ouvido por Garcia de Cáceres, mercador de pedreiras, que respondeu: “para morrer, tanto faz cá como lá”».


Não há dúvida: a tradição é uma coisa muito bonita.
A tradição «judaico-cristã» principalmente...





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