segunda-feira, 27 de março de 2006
A Palhaçada
Uma das características mais peculiares do sistema judiciário português é sem dúvida a forma como se desenrola a prova testemunhal nas audiências de julgamento.
Seja em processos cíveis seja em crime, é absolutamente normal ouvirmos de alguém que vai testemunhar num julgamento dizer “eu cá vou pelo autor”, ou afirmar solenemente “aquele sujeito que nem pense que eu vou testemunhar por ele”.
Porque já não passa pela cabeça de ninguém achar que só vai depor a um julgamento para simplesmente dizer... a verdade.
Isso é que não!
Há sempre maneira de aldrabar aqui e além, de esticar um bocadinho aquilo que toda a gente sabe que é “a verdade” para favorecer um parente ou um amigo.
Uns mentem pelo Autor; outros mentem pelo Réu. E que ganhe o que mentir melhor...
De tal forma que a aldrabice é já uma realidade absolutamente institucionalizada na vida portuguesa.
E os Tribunais não são excepção. Muito antes pelo contrário:
Se há uma dificuldade no emprego, arranja-se logo um atestado médico.
Se alguém está em palpos de aranha com a justiça, pede a dois ou três amigos “para irem por ele” a tribunal. Basta um bom advogado para ensaiar o teatro, e a coisa está feita.
E a farsa está de tal forma generalizada e tão culturalmente enraizada, que já ninguém liga à fórmula do “jura que diz a verdade” que o juiz faz a testemunha repetir antes do depoimento. Muito menos à advertência solene que faz de que quem mentir comete o crime de falsas declarações.
E a patranha é já tão normal e corriqueira que já ninguém acha estranho que metade das testemunhas de um caso vão a tribunal só para mentir com quantos dentes têm na boca.
Num quarto de século desta vida, não vi até hoje em Portugal uma única testemunha ser sequer incomodada por ter aldrabado descaradamente um depoimento depois de ter solenemente jurado dizer a verdade.
Já ninguém liga: nem juizes, nem Ministério Público, ninguém.
Nem mesmo quando a coisa vai tão longe que se transforma numa autêntica palhaçada:
Tenho em mãos um caso que corre num dos juízos criminais de um tribunal dos arredores de Lisboa, em que represento quem apresentou queixa.
A certa altura a defesa apresenta duas testemunhas, obviamente ensaiadas. Mas de uma forma tão estúpida e incompetente e a contar uma história tão inverosímil, tão absurda e irrealista, que num ápice os seus depoimentos se desmoronaram em plena audiência.
Alguém pensa sequer que vai acontecer alguma coisa a estas testemunhas que juraram dizer a verdade e que foram advertidas de que se mentissem cometeriam um crime?
De facto, se nunca acontece nada a quem aldraba num julgamento, porque não aldrabar?
Embora estejam inequivocamente vinculadas pelo “Princípio da Legalidade”, que as obriga a tornar consequentes os crimes que lhes passam diante dos olhos, nem a juíza nem a procuradora do Ministério Público mexeram uma palha.
A Sr.ª Procuradora, continuou impávida e serena, e a interromper a audiência de julgamento a intervalos regulares para repetir que não prescindia da sua hora de almoço.
E quando requeri a passagem de certidões dos depoimentos das testemunhas perjuras, para contra elas intentar procedimento criminal, a juíza olhou para mim e encolheu os ombros com um ar absolutamente estupefacto, como se eu viesse de outro planeta.
Como se eu fosse um desmancha-prazeres, ou um Dom Quixote qualquer que quer acabar com a forma como toda a gente sabe que o circo funciona ou, sacrilégio!, quisesse de repente acabar com o número dos palhaços.
E também como se soubesse que, de qualquer modo, qualquer processo crime que eu levante contra as testemunhas só vai é dar trabalho e causar incómodos e chatices a toda a gente.
E que, no final, não vai obviamente dar em nada...