quarta-feira, 22 de março de 2006

 

Adeus!



Foi uma invenção do Zé, claro está: andávamos pelas ruas ou dentro dos restaurantes à procura de pessoas com parecenças físicas com celebridades. Às vezes nem era preciso ser muita.
Quando encontrávamos alguém, segredávamos um ao outro:
- Olha o Bispo de Setúbal!
ou
- Olha o Alberto Costa!

E quando passávamos pelo desgraçado, cumprimentávamo-lo reverencialmente:
- Boa noite, Sr. bispo!
ou
- Boa noite, Sr. ministro!

Claro que nos pirávamos dali à pressa, deixando o homem de cara à banda, sem saber o que nos responder. Depois, olhávamos para trás, e ríamos que nem uns perdidos.

Está bom de ver que nos valíamos do nosso principal argumento: os dois juntos pesávamos mais de 250 quilos e medíamos quase quatro metros de altura.

Por isso mesmo não nos ensaiávamos nada em nos pormos atrás de um infeliz qualquer num centro comercial e seguíamo-lo juntos a 10 centímetros de distância com as mãos atrás das costas e com o ar mais descontraído do mundo, até o homem fugir dali, autenticamente em pânico.
Ou entrávamos numa loja de roupa e obrigávamos o empregado a desarrumar metade das prateleiras, numa procura inútil de alguma coisa que nos servisse.
Ou então, resolvíamos perseguir a alta velocidade por essa Lisboa fora um sujeito qualquer que tinha feito entrar no carro uma prostituta acabada de contratar numa esquina, e lá lhe estragávamos o arranjinho.

O Zé Ramos tinha este condão de me fazer regressar à infância.
Passávamos a vida a ver qual de nós inventava a brincadeira mais disparatada e depois ríamos como dois garotos de escola.

Mas ao mesmo tempo, o Zé era uma pessoa de uma honestidade escrupulosa e inabalável.
Depois de o conseguirmos livrar do vício do jogo, não descansou enquanto não pagou todas as suas dívidas. E porque algumas eram a “maleiros” do Casino Estoril, nem sequer tinha de as pagar se não quisesse.
Ainda assim, pediu-me para as negociar com todos eles, um de cada vez. Demorou alguns anos, mas pagou-as todas. Até ao último cêntimo.

Tinha um orgulho incomensurável na sua voz e no imenso talento com que a utilizava.
Quando íamos com ele a um estúdio, exibia-se inchado como um pavão, e explicava-nos com ar professoral como aquilo se fazia, e como se gravava logo ao primeiro “take” e no tempo absolutamente certo um intrincado texto de 4 ou 5 minutos.

Tinha um coração imenso, que nem os sucessivos “by-pass” tinham conseguido abalar.
Mesmo quando eu lhe dizia que se ia lixar, vi-o fechar os olhos e avalizar livranças para ajudar amigos enrascados. E depois, claro, pagava-as ao banco até à última.
E desabafava:
- Tinhas razão: aquele cabrão bem me lixou.
Mas não tinha coragem de lhes pedir o dinheiro de volta.

Durante bem mais das duas longas décadas em que partilhámos a nossa amizade, confiámos um ao outro os nossos mais inconfessáveis segredos, os nossos mais profundos sentimentos e os nossos mais recônditos sonhos. Que sempre soubemos que estavam mutuamente guardados a sete chaves.
Conversámos noites inteiras até ser dia.
Fazíamos planos malucos e falávamos dos amigos, de carros, de todo-o-terreno, de gajas, do filho dele, das minhas filhas, dos impostos, do Brasil, do sonho da rádio...

E chorámos juntos à beira da campa do Paulo Sampaio e Melo.

Mas como era teimoso que nem uma mula, fumava desabaladamente, cigarro atrás de cigarro.
Chaguei-o milhares de vezes para deixar de fumar.
Expliquei-lhe vezes sem conta como eu próprio tinha conseguido:
- É de repente, pá; é de um dia para o outro!
Mas em vão: quando falávamos em tabaco até parecia que fumava mais de propósito, aquele malandro.

Até que lhe foi diagnosticado um cancro.
E nem assim deixou de fumar!

Mas cumpriu pontualmente a medicação, que a Marília, com uma paciência de santa e uma dedicação sem fim, lhe punha à frente no minuto certo.

A quimioterapia deitou-o completamente abaixo.
Mas, ao mesmo tempo, deu-lhe uma réstia de esperança a que se agarrou desesperadamente.
E em que todos nós quisemos absurdamente acreditar.

Ao fim de algumas sessões chegou-me a dizer que estava a ganhar ao cancro por dois a zero.
Mas atenção, dizia ele: ainda é cedo para cantar vitória; o “câncaro” ainda pode ter o Mantorras no banco e fazê-lo entrar em campo à última da hora!

E foi mesmo o que aconteceu.

Fui vê-lo ao I.P.O. umas horas antes de ele morrer.
Falei com ele e ainda o desafiei para se pôr bom para irmos dar uma volta no jeep novo.
Riu-se, já sem ânimo e absolutamente ciente do seu estado.

Fui falar com o médico, que me disse no corredor que o Zé dificilmente sobreviveria àquela noite.

Quando voltei à enfermaria vi que à minha frente estava um Zé Ramos inapelavelmente derrotado pela doença.
E ele sabia-o.
Olhou para mim fixamente e disse-mo claramente com aqueles olhos que eu conhecia tão bem.
E sei que, ao mesmo tempo, entendeu perfeitamente o que lhe disse com os meus.

Fugi dali a maldizer a profunda imbecilidade que é o vício do tabaco. Meti-me sozinho no carro e às escondidas chorei descontroladamente no parque de estacionamento.

De facto, escassas horas depois o Zé Ramos estava morto.

Adeus, Zé.
Vai ser muito difícil encontrar alguém para te substituir naquela memória rápida do telemóvel.
Vou ter muitas, muitas saudades tuas.

Adeus, MEU AMIGO.





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