sábado, 22 de janeiro de 2005
O Jovem Delinquente
Ao fim de quase vinte anos a memória daquele caso ainda o perturbava.
Recostou-se para trás na cadeira de braços forrada a pele e olhou em volta. Nem o conforto daquele gabinete de advogado de sucesso, nem sequer o longo tempo passado impediam aquele frio no estômago de cada vez que aquela memória o assaltava.
Será que tinha feito tudo o que devia? Tudo o que podia? Ainda hoje não sabia.
Porque raio se tinha lembrado outra vez?
Respirou fundo e fechou os olhos.
O gabinete era então modestamente mobilado: a secretária metálica comprada em segunda mão a um primo que tinha mudado de casa. A cadeira de napa comprada em saldo. As estantes com os dossiers dos processos arrumados espaçadamente para parecerem mais...
O casal de ciganos entrou.
Sentaram-se desconfortáveis nas cadeiras à sua frente. Ele muito direito, rodava nas mãos o chapéu castanho muito manchado e tentava disfarçar a atrapalhação.
O filho tinha sido preso.
«Sr. Dr. ele, o meu Zé, só tem 19 anos. Ajude-o».
Foi consultar o processo. Não! Está em segredo de justiça!
Foi vê-lo à Penitenciária.
Ele e um amigo tinham abordado um brasileiro ali para os lados do Bairro Alto. Pediram-lhe lume e o próprio ar atemorizado do outro os encorajou. Encostaram-no à parede e tiraram-lhe o que tinha nos bolsos sem encontrarem qualquer resistência.
Fugiram apressados com o produto do saque: 17$50 em dinheiro e um isqueiro «Bic» azul.
Mas foi por pouco tempo. O brasileiro correu para a Esquadra mais próxima e destacaram-lhe um carro patrulha que logo às primeiras voltas os encontrou.
Fez o requerimento tentando a liberdade provisória, nem que fosse com caução.
O Ministério Público opôs-se. Alegou perigo de fuga: «repare-se que o arguido é de raça cigana», leu atónito.
O juiz manteve a prisão preventiva, aceitando os argumentos.
Quase um ano depois, o julgamento. Toda a família à espera, «acampada» à porta do Tribunal.
A esperança? Claro: Deus é grande e a justiça dos homens não vai falhar. É a primeira vez que o Zé se mete nestes assados. Tem 19 anos. Um isqueiro descartável e 17$50 não hão de ser motivo para grande castigo. Nem sequer houve grande violência com o brasileiro.
Vai apanhar pena suspensa, com toda a certeza.
E não há aquela lei dos «Jovens Delinquentes»? Não disse o Dr. que ela mandava o juiz olhar para a idade?
Ele tem 19 anos, é uma criança!
A audiência estava marcada para as 2 horas. Às 3 entraram os juizes.
Meia hora depois, começaram os outros quatro julgamentos também marcados para a mesma hora.
O seu começou às 6,30 da tarde.
«Vá lá, conte lá isso depressa que não há tempo a perder. Já viu que horas são?»
O juiz presidente, qual cometa, não era para contemplações. Os outros dois juizes não: um deles até estava meio distraído, quase a dormir; o outro escrevia atarefado em processos que tinha trazido com ele para a sala de audiências.
Vinte minutos depois tinha terminado o julgamento. Com as alegações do advogado e tudo, que o ar de ameaçador enfado do juiz não deu para mais.
Uma semana depois a sentença: 6 anos de prisão!
Claro que o recurso vai fazer justiça. Desta vez é que vai ser.
A motivação do recurso foi feita e refeita. Ao ínfimo pormenor.
Como mandam as regras, tudo estava mencionado.
O irrisório montante do roubo.
E a idade! Não tinha ele 19 anos? Não havia aquela lei dos jovens?
É que o tribunal de primeira instância não aplicou aquela lei.
Era a primeira vez que entrava no Supremo Tribunal de Justiça.
A própria solenidade da sala atemorizava.
Até a D. Maria II o olhava fixamente daquele quadro.
Os juizes Conselheiros entraram. Ena tantos!
Tem a palavra!
Então, esperançado, expôs os seus argumentos. Um a um.
Todos irrefutáveis, claro.
Espera! Aqueles três juizes do lado direito estão na conversa. Não estão a ligar patavina a isto. Não faz mal, o juiz relator está com atenção.
Falou quase 20 minutos.
Para o fim, deixou o argumento da idade. A omissão da aplicação da lei por parte do Tribunal, que nem sequer referiu a sua existência.
Até que finalizou: Peço Justiça!
Com ar solene, o juiz presidente abriu uma pasta preta e tirou umas folhas. Passou-as lentamente nas mãos, olhou para a última e disse sem levantar os olhos:
«Nega-se provimento ao recurso; o Sr. Dr. depois passa na secretaria que lhe dão a fotocópia do acórdão; o caso seguinte é o número...».
Espera! O acórdão já estava pronto? O que é que eu estive aqui a fazer?
A audiência estava marcada para as 2 horas. Às 3 entraram os juizes.
Meia hora depois, começaram os outros quatro julgamentos também marcados para a mesma hora.
O seu começou às 6,30 da tarde.
«Vá lá, conte lá isso depressa que não há tempo a perder. Já viu que horas são?»
O juiz presidente, qual cometa, não era para contemplações. Os outros dois juizes não: um deles até estava meio distraído, quase a dormir; o outro escrevia atarefado em processos que tinha trazido com ele para a sala de audiências.
Vinte minutos depois tinha terminado o julgamento. Com as alegações do advogado e tudo, que o ar de ameaçador enfado do juiz não deu para mais.
Uma semana depois a sentença: 6 anos de prisão!
Claro que o recurso vai fazer justiça. Desta vez é que vai ser.
A motivação do recurso foi feita e refeita. Ao ínfimo pormenor.
Como mandam as regras, tudo estava mencionado.
O irrisório montante do roubo.
E a idade! Não tinha ele 19 anos? Não havia aquela lei dos jovens?
É que o tribunal de primeira instância não aplicou aquela lei.
Era a primeira vez que entrava no Supremo Tribunal de Justiça.
A própria solenidade da sala atemorizava.
Até a D. Maria II o olhava fixamente daquele quadro.
Os juizes Conselheiros entraram. Ena tantos!
Tem a palavra!
Então, esperançado, expôs os seus argumentos. Um a um.
Todos irrefutáveis, claro.
Espera! Aqueles três juizes do lado direito estão na conversa. Não estão a ligar patavina a isto. Não faz mal, o juiz relator está com atenção.
Falou quase 20 minutos.
Para o fim, deixou o argumento da idade. A omissão da aplicação da lei por parte do Tribunal, que nem sequer referiu a sua existência.
Até que finalizou: Peço Justiça!
Com ar solene, o juiz presidente abriu uma pasta preta e tirou umas folhas. Passou-as lentamente nas mãos, olhou para a última e disse sem levantar os olhos:
«Nega-se provimento ao recurso; o Sr. Dr. depois passa na secretaria que lhe dão a fotocópia do acórdão; o caso seguinte é o número...».
Espera! O acórdão já estava pronto? O que é que eu estive aqui a fazer?
Tinha preparado isto tão bem...
Então e os «Jovens Delinquentes»?
E a «atenuação especial da pena»?
Fica com os seis anos?
Mas ele é primário. Foram 17$50 e a merda de um isqueiro. Tem 19 anos. É uma criança...
6 anos?
Quanto é que apanhou aquele tipo que ia com os copos e atropelou a miúda na passadeira? Dois anos com pena suspensa, não foi?
Então e os «Jovens Delinquentes»?
E a «atenuação especial da pena»?
Fica com os seis anos?
Mas ele é primário. Foram 17$50 e a merda de um isqueiro. Tem 19 anos. É uma criança...
6 anos?
Quanto é que apanhou aquele tipo que ia com os copos e atropelou a miúda na passadeira? Dois anos com pena suspensa, não foi?
Apetecia-lhe gritar.
Acabou-se!...
Ainda o foi ver ao Estabelecimento Prisional de Sintra. Estava mais magro, mas conformado: «deixe estar, Sr. Dr.; Tinha que ser, Sr. Dr.; Eu até já estava à espera, Sr. Dr...».
Depois de cumprida a parte regulamentar da pena, o Zé saiu em liberdade.
Não a gozou por muito tempo.
Contraiu SIDA na prisão, nunca soube explicar como.
Já morreu.
Acabou-se!...
Ainda o foi ver ao Estabelecimento Prisional de Sintra. Estava mais magro, mas conformado: «deixe estar, Sr. Dr.; Tinha que ser, Sr. Dr.; Eu até já estava à espera, Sr. Dr...».
Depois de cumprida a parte regulamentar da pena, o Zé saiu em liberdade.
Não a gozou por muito tempo.
Contraiu SIDA na prisão, nunca soube explicar como.
Já morreu.
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(*) Qualquer semelhança com pessoas ou factos reais, ou mesmo com a realidade concreta da justiça portuguesa será... pura coincidência?...