domingo, 16 de janeiro de 2005
O Casamento
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As principais consequências jurídicas deste contrato para as pessoas que o celebram são, como é óbvio, de ordem pessoal e patrimonial:
Para além de constituir a «fonte da relação jurídica familiar» com consequências no nascimento de laços de afinidade com os parentes do outro cônjuge, o casamento tem fortes repercussões na esfera patrimonial dos seus contratantes (que são distintas consoante o regime de bens adoptado e as convenções antenupciais celebradas), tornando os cônjuges automaticamente herdeiros um do outro.
Obriga ainda os cônjuges, no âmbito de um rigorosa igualdade, ao cumprimento recíproco dos «deveres conjugais»: respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência.
Finalmente, acarreta outras consequências indirectas, como a possibilidade de sucessão no arrendamento, em caso de morte do cônjuge em nome de quem estava celebrado o contrato de arrendamento da casa onde o casal vivia, ou o direito à pensão de reforma ou aposentação do cônjuge falecido.
Vem isto a propósito da polémica que incessantemente rodeia a possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, e que ultimamente tanto espaço mediático ocupa em Espanha e que em breve, depois das eleições, voltará à ordem do dia em Portugal.
Confesso que me custa a entender a posição daqueles que persistem em impedir liminarmente o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Nem entendo que possam existir objecções de ordem moral, ética ou religiosa, já que nunca vi ninguém a defender a "obrigatoriedade" do casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou a defender que ele se aplique ao casamento religioso.
Acho que, num Estado verdadeiramente laico, o problema da extensão do casamento a pessoas do mesmo sexo deveria ser colocado somente numa exclusiva e estrita óptica jurídica.
Até porque, se na maior parte das situações estaremos a falar de dois homens ou duas mulheres que vivem, como diz a lei, «em condições análogas às dos cônjuges», casos haverá em que poderemos estar perante, por exemplo, dois irmãos de avançada idade que sempre viveram juntos, ou uma velha senhora e a sua «governanta» de 50 anos, que queiram - e estão no direito - de assegurar alguma forma de juridicidade ao seu longo relacionamento, de onde o sexo até está afastado.
O que é mais estranho na posição de quem não admite o casamento de duas pessoas do mesmo sexo, é que grande parte das consequências jurídicas que, do plano patrimonial, decorrem do casamento civil podem já ser obtidas, uma a uma e isoladamente, quer através de beneficiação mútua em testamentos, quer pela celebração de contratos específicos.
Deste modo e, repito, de um ponto de vista estritamente jurídico, a questão do casamento entre duas pessoas do mesmo sexo resumir-se-ia no plano patrimonial a conferir acolhimento legal (nem que fosse por meras questões de ordem prática e de comodidade) a um único contrato que incluísse todos os que são celebrados separadamente.
E que, claro, também vinculasse contratualmente quem o celebra ao cumprimento dos mesmos deveres que, do ponto de vista pessoal, necessariamente decorrerão.
Porquê proibir então a celebração de um tal contrato?
Será que é somente porque a palavra «casamento» aplicada a um contrato celebrado entre duas pessoas do mesmo sexo pode ferir a «moral burguesa»?
Então que se afastem já todos os obstáculos a quem quer livremente associar-se e «constituir família em plena comunhão de vida» com alguém do mesmo sexo: mude-se o nome ao contrato!!!
Chamemo-lhe, por exemplo, «Contrato de Comunhão de Vida», «Contrato de Associação Familiar», ou outro nome qualquer.
Assim já está bem?
Será que a discussão de todo este problema é afinal meramente... semântica?
Claro que não!
O problema é bem outro: passa exclusivamente pela convicção que algumas pessoas têm de que, se determinam a sua própria vida de acordo com as opções sociais, éticas ou religiosas que entenderam por bem adoptar, o que, como é óbvio, lhes é perfeitamente legítimo, também se acham no direito de impor esses mesmos valores às outras pessoas.
O que já é completamente inadmissível.
Que estranha legitimidade é essa que dá a um habitante de Bragança a possibilidade de impedir que duas pessoas do mesmo sexo que vivem em Faro, se associem em comunhão de vida?
Se virmos bem, a questão do «casamento homossexual» – com esse nome ou com outro – passa antes de mais pelo reconhecimento de que ele constitui uma das mais básicas e fundamentais liberdades individuais dos cidadãos.
Tão importante como, por exemplo, a liberdade religiosa, é o direito a um cidadão determinar a sua própria vida.
Porque uma coisa é certa:
em nenhum país a democracia estará plenamente afirmada enquanto não for reconhecido esse direito!