sábado, 20 de novembro de 2004

 

Sacudir a água do meu capote


Andava aqui a vasculhar pelo computador em textos antigos, e dei com este artigo da autoria do Bastonário da Ordem dos Advogados Dr. José Miguel Júdice, publicado no «Público» vai para um ano, já no longínquo dia 10 de Dezembro de 2003.
Confesso que o reli agora com o mesmo interesse com que o li da primeira vez, e logo me lembrei porque o tinha guardado.
Por isso, e como parece que o artigo tem cada vez mais actualidade, não hesito em partilhá-lo agora aqui no Blog, sem quaisquer comentários.
Dei a este “post” o mesmo título do artigo, precisamente porque também «o meu capote» precisava muito de ser sacudido.
Reza assim o artigo:

«1. O Senhor Conselheiro Pires Salpico relatou recentemente um Acórdão relativo a um pedido de recusa de Juiz.
No que se refere à decisão em si mesma e aos seus fundamentos, nada tem o Bastonário da Ordem dos Advogados a dizer, como nada tem a dizer de nenhuma decisão judicial especial e concreta. Mas, pelo contrário, relativamente ao que tenha de geral e abstracto e - sobretudo - tendo sido divulgada (como é hábito...) na comunicação social, o Bastonário está institucionalmente obrigado a falar.
2. O que escreveu o Conselheiro Salpico que exige comentário? Resumindo, considerou que alguns arguidos, por terem "grande poderio financeiro e assinalável influência política", "contrataram... hábeis Advogados", que no caso em apreço deduziram um incidente de recusa de juiz que "não tem a mínima consistência jurídica e constitui um mero expediente dilatório".
De seguida refere que "o problema das manobras dilatórias empregues por alguns advogados...é uma questão velha de séculos, à qual já os nossos antigos reis procuraram dar solução legal".
A esse título menciona decisões de D. Afonso IV e as Ordenações de D. Duarte. E, nisso se inspirando, afirma que "em processo penal, actualmente, não há a possibilidade de responsabilizar pessoalmente os advogados que praticam manobras dilatórias", critica os "órgãos políticos de soberania" (sic) pelas leis que fixam "a duração excessiva dos prazos judiciais", e com isso, e com o "excesso de garantismo em que se acha atolado o nosso processo penal", justifica a impossibilidade de uma rápida e pronta administração da justiça.
3. Para além destas considerações (manifestamente mais adequadas num texto de reflexão sobre a Justiça) e não essenciais nem indispensáveis à boa decisão da causa, critica a utilização de certas expressões pelos Advogados recorrentes, que considera que não são essenciais ou indispensáveis à defesa e entende serem "deselegantes, agressivas e violentas contra magistrados".
E termina citando e louvando Sócrates, por ele ter defendido o respeito da sentença que o condenou à morte, daí retirando a indispensabilidade de respeito das sentenças dos juizes e uma crítica ao incidente deduzido e que esteve na origem do seu Acórdão.
4. Este resumo, que creio fiel, do que escreveu o Conselheiro Salpico é um exemplo de escola (1) do que não deve ser uma sentença judicial, (2) do que não deve ser a forma de relacionamento entre as profissões que constituem o Judiciário, (3) do que não deve ser o entendimento da função judicial, (4) do que não deve ser a explicação para os atrasos da Justiça e (5) de insensibilidade aos princípios estruturantes do Estado de Direito.
O que se explica de seguida.
5. Uma sentença judicial deve ser a aplicação do direito ao caso concreto, pacificando uma situação com relevo jurídico, tomando em consideração os factos relevantes.
A boa sentença é curta, incisiva, vai direita ao assunto, resolve a questão e - quando muito - tenta fazer alguma doutrina prudente sobre as questões jurídicas que sejam inovadoras. Uma sentença não é um comentário político, um desabafo, uma queixa, um grito de alma, uma reacção raivosa, um panfleto ideológico ou um acerto de contas.
Andou bem, por isso, o Conselheiro Henriques Gaspar que recusou subscrever o que no Acórdão Salpico não constituía materialmente uma sentença.
6. Um Juiz Conselheiro é alguém que chegou a um Tribunal Superior depois de uma longa carreira. Espera-se que isso lhe tenha aumentado a sabedoria, a sensatez, a prudência, a cautela, o sentido das proporções. E exige-se que actue com base em alguns pressupostos evidentes: a advocacia não é inimiga da magistratura judicial, os Advogados existem para defender os Cidadãos e não para serem agradáveis ao Poder e aos poderes, é inadmissível a falta de cooperação e de diálogo entre as profissões que compõem o Judiciário (Juizes, Procuradores e Advogados) e que, por o comporem, usam da palavra em pé de igualdade na abertura do ano judicial.
O Conselheiro Salpico falhou nisto tudo, no que seguramente deverá ter sido um dos textos judiciais menos felizes que escreveu.
7. De facto, se for verdade o que ele afirma sobre procedimentos dos Advogados de alguns dos arguidos desse processo - o que desconheço, não posso conhecer e não tenho competência juridico-disciplinar para decidir -, o Conselheiro Salpico não devia ter escrito uma diatribe contra a advocacia e os Advogados portugueses vivos e os que viveram desde o início da nacionalidade; deveria, pura e simplesmente, participar disciplinarmente de tais Advogados para o órgão deontológico competente, que deve analisar e decidir.
Seria aqui a altura de recordar Sócrates a quem o citou. Seja como for, vou solicitar a tal órgão que aprecie a conduta dos Advogados atacados, para que sejam punidos, se for devido, ou libertados de um labéu ofensivo, se não for merecido.
O Conselheiro Salpico esqueceu-se da lei no seu Acórdão, pois há legalmente "possibilidade de responsabilizar... advogados que pratiquem manobras dilatórias". Mas a lei atribui tal competência à Ordem dos Advogados, como atribui no caso dos Juízes ao Conselho Superior da Magistratura.
Com uma diferença: dos Advogados há recurso para os Tribunais; e dos Juizes também...!
Como o Conselheiro Sampaio da Nóvoa e o então Desembargador Boavida bem sabem, devido a um episódio onde pelo segundo foram usadas palavras bem mais "deselegantes, agressivas e violentas" do que as mencionadas pelo Conselheiro Salpico, não tendo o S.T.J. nelas visto qualquer razão para punição disciplinar, desse modo estabelecendo uma espécie de "benchmark" do mau gosto.
8. A função judicial - a menos que se proponha concretizar aquilo a que alguma doutrina chama um "Estado de Juizes" - não serve para definir as linhas políticas da organização do Estado.
Os Juizes, como é evidente, têm direito (e até o dever) de criticar, sugerir, apoiar soluções de organização do sistema judicial, sendo o Congresso da Justiça disso um bom exemplo.
Mas as sentenças não devem servir para isso. É que a força pacificadora de uma decisão definitiva (e não de uma decisão recorrível, como parece pensar o Conselheiro Salpico, ao citar - com muita infelicidade, mas disso se dirá adiante - Sócrates) desaparece se ela servir manifestamente outros fins.
Será que o Conselheiro Salpico considera que têm força de caso julgado - pelo menos formal - as considerações a que reajo? Ou que são recorríveis?
E por quem? E para onde?
9. A força essencial da decisão judicial não é a consequência automática de ter sido o resultado de uma conclusão silogística tirada por um ser humano vestido com uma beca. Se assim fosse, se por unção divina ou predestinação a decisão do Juiz fosse axiomaticamente santa e perfeita, não faria sentido o sistema de recursos e nem faria sentido sequer a liberdade. As próprias leis, como aliás o Conselheiro Salpico reconhece ao criticá-las no seu Acórdão, não são sempre respeitáveis.
E é mostrar total incompreensão do Estado de Direito, dos Direitos de Cidadania, das garantias da Liberdade e até da separação de poderes, citar textos legais onde se escreve "manda el-rei aos Juizes" para daí concluir que há falta de possibilidade de agir no processo penal contra abusos de Advogados. Mesmo que sejam "hábeis", como lhes chama e provavelmente não estando a elogiá-los, sendo assim também desnecessariamente deselegante para quem seguramente não o ofendeu.
10. Citar o passado é sempre inadequado. Ou perigoso. Sobretudo um passado tão longínquo.
Será que o Conselheiro Salpico acharia correcto que se citasse Gil Vicente e o "Auto da Barca do Inferno" para extrapolar contra a Magistratura de então (e a de todos os tempos, como ele fez da Advocacia) a partir do facto de um Juiz ser levado para o Inferno, por ter feito "ruim Justiça", ter sido "peitado" através da sua Mulher e ter omitido ao confessor na hora da morte os pecados que o envergonhavam?
E não seria justificável que o Conselheiro Salpico, pelo menos em conjunto com a sua diatribe contra os Advogados, lembrasse a tão recente luta dos Advogados portugueses - e de alguns Juizes também - pelas liberdades e pelo Estado de Direito contra ao abusos da Ditadura e depois do PREC, tão recentes ainda na nossa memória colectiva e seguramente também na sua memória individual?
Quem, como ele, regista no seu Acórdão que "sobre os seus ombros pesa o indeclinável dever de, em nome do povo, administrar a justiça" deve ter sido um expoente da luta pelas liberdades e nessa luta deve ter ombreado com muitos Advogados que agora devia em justiça recordar.
11. A tudo isto acresce - sempre com o respeito devido, que é por definição muito - que a teoria explicativa avançada pelo Conselheiro Salpico para os atrasos da Justiça não é correcta, ou pelo menos não pode ser virada contra os Cidadãos e os Advogados, como ele faz.
A sua teoria está estruturada sobre a duração excessiva dos prazos processuais e o excesso de garantismo. Ora, é sabido que os Advogados têm de cumprir os prazos que a lei lhes fixa, sob pena dos Cidadãos que defendem perderem o seu direito.
Mas os Magistrados nada perdem se não cumprirem os prazos que lhes são determinados - e nem sequer tal facto é relevante para progressão na carreira.
O excesso de trabalho - que é real - considera-se justificação bastante.
E não é preciso chegar ao exemplo recente que um Colega me comunicou há dias (aguarda há seis anos que seja escrita uma sentença!) para se concluir que o Conselheiro Salpico deveria ter encontrado outra teoria se quisesse culpar os prazos de que dispõem os Advogados.
Por outras palavras, teria sido melhor que ficasse calado!
12. A outra teoria - a do excesso de garantismo - compreende-se vinda de quem cita em seu abono textos de velhas decisões políticas medievais e de leis pré-modernas. Esses eram tempos em que realmente as garantias não eram excessivas. Quem não se lembra de forma - realmente expedita - como Inês de Castro foi condenada à morte e executada pela Justiça de D. Afonso IV? A tortura, os métodos inquisitoriais de recolha de prova, a condenação sumária e sem controle, as ordálias, tudo isso fazia funcionar depressa a "justiça".
Como também no caso das condenações pelo filho de D. Afonso IV (pelo menos nisso bom seguidor do Senhor seu Pai) dos matadores de Inês de Castro, para os quais realmente nem manobras dilatórias foram possíveis, quanto mais uma defesa estruturada na presunção de inocência, na igualdade de armas, na dupla jurisdição, no princípio "nullum crimen sine legem", no ónus da prova para quem acusa, e noutras coisas do género que já deviam desagradar tanto a D. Afonso IV que as não permitiu para a defesa da Mãe de 3 dos seus netos.
Os "garantismos" em regra desagradam aos que têm o poder; ou o desejo "justiceiro" de punir.
Mas não será que o Conselheiro Salpico - com toda a sua experiência e orgulho em administrar a Justiça em nome do Povo – não entende que nesses tempos antigos talvez as "delongas" e "malícias" dos Advogados fossem a única forma de evitar as decisões arbitrárias? Será que não teria sido sensato que o Sr. Conselheiro tivesse, pelo menos, admitido que assim fosse? Ou concorda com a forma como foram "julgados", sem delongas nem malícias, rapidamente condenados e sumariamente executados, Inês de Castro e quem a terá mandado matar?
13. Finalmente, vamos a Sócrates.
Creio que se tivesse de escolher um exemplo de infelicidade - o que chamaria de "infelicidade padrão" – no Acórdão do Conselheiro Salpico, não hesitaria em eleger a belíssima citação do grande sofista.
A citação é feita como exemplo moralizador contra a decisão tomada por alguns Advogados de deduzir um incidente de recusa de Juiz. Ao contrário dos que recorreram e assim terão impedido que se concretizasse uma decisão judicial ("tomada de declarações para memória futura"), Sócrates preferiu acatar a sua condenação à morte devido ao respeito que merecem as sentenças dos juizes.
Mas não vê o Conselheiro Salpico que se havia decisão que devia ser objecto de ataque e de recurso era precisamente a de uma condenação à morte e por mero delito de opinião?
E desconhecerá o Conselheiro Salpico que as decisões só se tornam definitivas (e por isso "respeitáveis e respeitandas") quando transitam em julgado?
E não percebe que a lógica da sua citação é atribuir um forte labéu de crítica ao simples princípio de que se pode recorrer das decisões judiciais?
E não entende que todo o sentido do sistema judicial se esvai se o recurso - qualquer recurso - fosse, ontologicamente e por definição, censurável?
14. Isto dito, nada me move contra o Conselheiro Salpico, como é evidente.
Mesmo sabendo que provavelmente poucos Magistrados Judiciais portugueses estariam disponíveis para assinar esta parte do seu Acórdão.
E, por isso, continuarei a lutar - até que a voz me doa, ou mesmo para além disso, que a desafinação será perdoada... - para que as Profissões do Judiciário se respeitem, se evitem abusivas generalizações que não são justas, se procure sempre realçar que sem Juizes e sem Advogados e Procuradores não se pode fazer Justiça.
15. Mas, perdoe-me o Senhor Conselheiro uma ligeira nota de humor.
Enquanto Advogado e enquanto Bastonário, senti-me salpicado pelo seu texto e tinha por isso de sacudir esta água ou esta lama do meu capote, do capote que com orgulho vesti há cerca de dois anos.
É esse o meu dever. Doa a quem doer, custe o que custar.
Pague o preço que tiver de pagar.
Escrito em Coimbra, no lugar onde vive a memória de Inês de Castro e da "Justiça" que lhe foi feita, no dia da Mãe, e para ser publicado no dia dos Direitos do Homem».




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