segunda-feira, 11 de outubro de 2004

 

Lembro-me de como tudo isto começou...

A actualidade política nacional tem-me feito lembrar de como tudo isto começou...

Lembro-me de quando Durão Barroso se demitiu.

Lembro-me da perplexidade com que assistimos, impotentes, ao desenrolar dos acontecimentos que se sucederam a essa demissão.
E para os quais, como se vivêssemos uma espécie de hiato na nossa democracia, os portugueses nada tinham contribuido.

Lembro-me de que após um resultado tão catastrófico como inédito nas eleições europeias o primeiro-ministro olhou os portugueses - olhos nos olhos - e nos disse que tinha “entendido a mensagem” que lhe tinha sido transmitida, logo prometendo "mais e melhor".

Mal sabíamos nós o que Durão Barroso queria dizer com estas palavras...

Lembro-me de como Durão Barroso esqueceu o que tão veementemente tinha dito de Guterres pouco mais de dois anos antes, não hesitando em refazer todas as interpretações que até então fazia do significado do “interesse nacional” com que vinha justificando o desastroso insucesso das políticas governativas que todos os portugueses há muito sentiam quotidianamente nas suas casas.

Lembro-me de como Durão Barroso não hesitou em fazer cair o governo de “salvação nacional” e a política de “interesse nacional”, em troca de um cargo para que fora indigitado, desde logo, com o duvidoso currículo de ser “o mal menor” ou o “menor denominador comum”, o que estranhamente lhe basta e o honra.
Mas que a dignidade do primeiro-ministro luxemburguês, por exemplo, havia recusado num piscar de olhos.

Lembro-me de então ver surgir, num passe de mágica, uma espécie de sucessão dinástica que nos foi imposta sem apelo nem agravo.

Lembro-me de ver Durão Barroso oferecer o país de bandeja a quem, como passado político, somente cabia a honra de ser o animador de serviço dos congressos do seu partido e, como sua grande obra, de ser o plantador-mor de palmeiras nas praias da Figueira da Foz, tendo sempre entendido o desempenho de cargos públicos como meros trampolins para as suas ambições pessoais.

Lembro-me, como se em democracia não coubesse ao cidadão eleitor eleger e despedir os seus governantes, de como com uma arrogância inaudita e com a maior displicência, ambos abandonaram os cargos para que tinham sido eleitos, renunciando a honrar os mandatos que tinham assumido para com os seus eleitores, impondo-nos uma espécie de promoção de presidente da câmara a primeiro-ministro, esquecendo e deixando a capital do país no maior descalabro que esta já viveu.

Lembro-me de como foi então passada esta batata quente para as mãos do Presidente.

Jorge Sampaio foi pela primeira vez em dois mandatos confrontado com uma situação que não admitia consensos: ou agradava a gregos ou a troianos.
Os seus poderes constitucionais e a inquestionável legitimidade que os mesmos lhe conferem, permitiam-lhe dissolver a Assembleia da República e convocar eleições antecipadas ou, pelo contrário, convidar novamente o partido maioritário para formar governo.

No entanto, Jorge Sampaio escolheu – em consciência, o que se respeita – a última destas opções.

Mas ao fazê-lo o Presidente esqueceu que, também ele, foi eleito com base num certo e determinado programa político – foi nele que a esquerda votou e não a direita – por quem conhecia as suas ideias políticas e ideológicas e prefigurou e confiou nas suas opções e escolhas políticas e que, com esse “contrato” político, lhe confiou o seu cargo.

Por isso, Sampaio não só violou grosseiramente os compromissos eleitorais que assumiu com quem em si tanto confiou política e ideologicamente, mas compactuou com uma espécie de colégio eleitoral, composto por meia dúzia de notáveis partidários, completamente destituídos de legitimidade constitucional e democrática, mas que se acharam competentes para, como numa monarquia, apadrinhar a sucessão encomendada de um primeiro-ministro.

Mas Sampaio ignorou também que é Presidente num regime constitucional semi-presidencialista – e não parlamentarista – fazendo dos seus próprios poderes uma interpretação restritiva, reduzindo-se a si próprio a uma "rainha de Inglaterra" que tem de conformar-se com os jogos político-partidários de bastidores e acatando, conformado, as sucessões dinásticas vindas de dentro dos comités partidários, e correndo até o risco de esvaziar de sentido político a eleição presidencial por sufrágio directo e universal.

Mas, muito principalmente, teria competido ao Presidente conhecer o seu país, auscultá-lo, sentir o seu pulsar, e decidir de acordo com todos esses sinais – incluindo os resultados eleitorais de três semanas antes – e não somente de uma pretensa estabilidade política parlamentar, já absolutamente desconforme com a concreta realidade política e social.

Lembro-me ainda de pensar que o interesse nacional exigir-nos-ia o benefício da dúvida ao actual governo - e ao próprio Primeiro-Ministro - ainda que do interior do partido que parlamentarmente o suporta se ouvissem acusações de favorecimento de amigos, de companheiros de percurso, de clientelas partidárias e até de inexplicáveis privilégios ao partido de coligação.

E lembro-me também de esperar que o Presidente da República não ficasse refém do poder executivo e não viesse a ser responsabilizado ou acusado de cumplicidade em eventuais erros ou insucessos do governo, pois até a sua futura demissão seria, em primeira análise, a confissão expressa – e tardia – do tremendo erro presidencial.

Lembro-me de pensar que já bastava estar o Presidente politicamente refém da incomensurável desilusão – de que ele próprio está bem ciente – que causou em quem em si tanto confiou.


Lembro-me, de facto, de lhe ter concedido o benefício da dúvida...




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